Crônicas de Sala de Aula: O cotidiano real

Ao chegar naquela quinta série, logo veio a fulaninha enlaçando os bracinhos ao redor de minha cintura e olhando para cima dizendo " professora desculpa por ter feito tanta bagunça o ano todo, prometo que vou me comportar melhor, eu te amo".

Em seguida começou a me contar que havia conhecido seu pai, faziam dez anos que o casal havia seguido caminhos opostos, seus olhinhos brilhavam, enquanto falava da emoção de encontrar o pai, mas logo, o relato ficaria com um ar de tristeza, ela disse " sabe professora eu adorei meu pai, mas meu irmão que também nunca tinha visto, chegou em casa drogado, meu pai brigou com ele e disse que ia chamar a polícia, eu fiquei com tanto medo que me escondi embaixo da cama, aí meu irmão saiu correndo, pulou o muro e fugiu, mas eu não consegui dormir a noite toda por causa disto".

Quando a pequena acabou de falar, ainda estava enroscada em mim, meus olhos a esta altura estavam cheios de lágrimas, eu a abracei mais forte.

Fiquei pensando em como um momento tão esperado, pode ser estragado por causa de drogas, que traumatizante para esta menina associar o dia mais feliz de seus últimos tempos, com a decepção, o mêdo em ver seu irmão drogado.

Esta é a real do cotidiano de muitos de meus alunos, que convivem em meio a este caos, domingo passado, um garoto da oitava série apanhou de outros dois garotos em frente á sua casa, levou muitos socos na cabeça, teve um derrame, passou por uma cirurgia de dez horas, para retirada do coágulo do cérebro, esta em coma induzido.

A vida para muitos não conta, conta o calor da hora, o querer desesperadamente se auto afirmar em meio aos demais, conta espancar, deixar o outro caído subjulgado, a sentença que impera é a de quem pode mais.

Por conta de tudo isto, mais uma família, passa neste exato momento, enquanto você lê esta crônica, por dores incontáveis, angústia, passa, pelo vale da sombra da morte.

Nós professores lutamos dia após dia para criar uma consciência de tolerância, de vislumbrar o outro como alguém diferente, mas nem por isso o outro, deixa de ser alguém, com direitos, desejos, sonhos, anseios, tristezas, alegrias.

Nossos jovens estão perdidos, precisam urgentemente da bússola que os orientará para o caminho do bem, das virtudes, das amizades, do real sentido de estarem aqui, para fazerem a diferença da boa vontade, do sorriso, e não a indiferença total e aturdida.

Julia Lopes Ramos
Enviado por Julia Lopes Ramos em 04/12/2009
Código do texto: T1960914