Vidas efêmeras

Sempre pensei em escrever sobre minha infância. Um pedaço da minha vida triste e sofrida. Tão castigada foi, que relutei em retratá-la por todos esses anos. Preferi deixá-la no esquecimento, por considerá-la demasiadamente amarga.

Ressuscito-a, agora, para revelá-la à netinha de quase onze anos, e à posteridade, principalmente ao netinho que já se anuncia como o novo membro da família.

As lágrimas, certamente, me farão arder os olhos. Pouparei a fala de embargar-se, pois esta narrativa jamais será lida oralmente por mim.

Eis a minha infância:

Aos quatro anos, fui privado do carinho paterno. Meu pai, jovem de vinte e sete anos, adoeceu de tuberculose, enfermidade incurável para as bandas do sertão nordestino. Era o ano de 1945. A ciência já havia descoberto o bacilo causador da doença, mas o atraso de então, as dificuldades advindas da Segunda Guerra Mundial, recém terminada, e a impossibilidade financeira da família para buscar tratamento médico em centros maiores, concorreram para que meu pai morresse lenta e dolorosamente.

Eu e meus dois irmãos, o primeiro com três anos incompletos e o segundo com apenas seis meses de idade, víamos nosso pai à distância, longe da cama em que passava o dia em seu sofrimento. A esposa, os pais e a única irmã ainda viva, também não podiam achegar-se a ele, abraçá-lo nem beijá-lo. O distanciamento físico era imperioso para evitar o contágio mortal da doença.

Os meus dois tios mais jovens haviam morrido; minha tia, possivelmente de meningite, faleceu aos vinte e três anos e deixou um casal de filhos: o menino com dois anos e a menina próximo dos seis meses de vida. Meu tio foi assassinado aos dezoito anos, covardemente emboscado por dois facínoras que lhe tiraram a vida recém saída da adolescência. O outro tio, o mais velho da casa, havia se transferido para o Rio de Janeiro. Não deu notícia à família até que quase todos morreram. Na época, as dificuldades de comunicação eram grandes para justificá-lo. Sua negligência, porém, trouxe muito sofrimento à minha adorada avó, que morreu sem rever o filho querido. O mais velho.

O bacilo da tuberculose era transmitido com facilidade (e ainda o é). Incurável, à época, a doença assustava, separando as pessoas fisicamente. Constituía verdadeira maldição. Pratos, copos, talheres e roupas eram separados e lavados com rigor. A limpeza em nossa casa tornou-se obsessão. Não fora o extremado amor de minha mãe e dos meus avós, que trataram do meu pai, ele teria morrido sem assistência, por medo da contaminação.

A casa vivia quase sempre trancada; apenas a porta principal mantinha-se aberta pela metade. As visitas eram escassas; médico e alguns parentes faziam a exceção. Nós, as crianças – meus irmãos e os primos filhos da tia falecida que moravam com meus avós – éramos mantidos sob severa vigilância para não exorbitarmos das áreas proibidas e dos limites de segurança.

Meu irmão caçula, aos seis meses de idade, vivia no colo de algum adulto, principalmente de minha mãe.

Cenas emocionantes faziam parte de nosso dia-a-dia. Mulheres choravam e acendiam velas aos santos. Talvez esperassem, com isso, iluminar os caminhos para que Deus chegasse até meu pai com a benção da cura. Juntavam-se às rezas e às penitências da família, rigorosas promessas e votos difíceis de cumprir.

Uma tristeza infindável!

A cena mais marcante, que se repetia sem o consentimento dos adultos, era patrocinada por minha prima. Quando não havia ninguém por perto, ela, evitando o contágio mortal, chegava à distância segura, com o meu pequeno irmão de apenas seis meses no colo, e dizia: “tio, veja seu filho!” Ele chorava desesperadamente. Não podia tocá-lo. O destino negou-lhe o prazer de abraçar a última cria, produto do amor dedicado à minha mãe. Também negara a ela o prazer de abraçar e beijar o marido, aos vinte e sete anos. Ambos tinham a mesma idade.

A enfermidade consumia o corpo jovem com relativa rapidez. Transferido para uma pequena propriedade rural de um dos seus tios, faleceu deitado em uma rede. Minha mãe, meus dois irmãos e eu vimos a vida deixar o seu corpo magro, consumido pela doença. Não nos foi permitido chegar perto, apertar-lhe as mãos ou fazer-lhe um último carinho. O contato físico era proibido. Os nossos gestos e lágrimas diziam quanto o tínhamos amado. Ficamos a acenar-lhe de longe, o choro convulsivo dizendo o que as palavras omitidas jamais diriam.

Morreu meu pai, aos vinte e nove anos.

Em minha retina ainda está gravado o seu último instante: a vela acesa, segurada pela mão moribunda, exibia uma chama trepidante que consumia a cera enquanto o espírito perdia o sopro de vida e retornava ao Céu.

Doença terrível.

Vingativa.

Pessoas que cuidaram do meu pai morreram da mesma enfermidade dois anos depois: minha avó e uma velha tia do meu genitor. Pagaram o preço do amor que lhe devotaram. A exceção foi minha mãe, que permaneceu viúva até aos setenta e oito anos, quando partiu para encontrar-se com ele no Céu. Tenho certeza disso. Acredito, até, que foram recebidos festivamente. Deus os acolheu. Suas bondosas almas passaram a ocupar o lar celestial.

Após as mortes do meu pai e da minha avó (os dois tios já haviam morrido e o outro não se sabia o paradeiro), restaram meu avô e minha tia, os últimos membros da família. Meu avô morreu aos sessenta e dois anos, trinta e seis meses após o falecimento da esposa, acometido por um derrame cerebral. Não teve oportunidade de despedir-se dos poucos membros restantes da família.

Deixou os netos novamente órfãos.

Minha tia, morreu aos noventa e dois anos; talvez tenha sido sentenciada a perpetuar a saudade e a chorar, sozinha, a perda prematura de seus entes queridos.

O sofrimento e as humilhações foram muitos, depois do que nos aconteceu. Pensei relatar alguns casos, humilhantes e discriminatórios, seguidos às mortes de meu pai e de minha avó, vítimas da tuberculose. Todavia, desisti de fazê-lo. Guardá-los-ei na memória para chorá-los solitariamente, como por certo o fez a minha velha tia.

O destino nos castigou muito.

Machucou nossos corpos.

Feriu nossas almas. Magoou nossos corações.

Mas não nos venceu.

Vencemos nós, que soubemos enfrentar os obstáculos, a vida difícil, as humilhantes discriminações sofridas. Hoje, legamos aos nossos filhos e netos o bom exemplo, o saber, o amor à vida, a compreensão e a fraternidade.

Do Céu, onde estão meu pai, meus avós e meus tios – que se foram tão cedo desta vida – contemplam as nossas vitórias. Minha mãe também faz parte dessa torcida, desde que partiu para a Glória, há treze anos.

Família pequena, a nossa, mas que soube amar-se mutuamente.