Indiscrição
Minha casa não é muito grande. Por não desejar descrevê-la nesta oportunidade, fico por aqui. Espero não ter frustrado a curiosidade de algum leitor. Do meu quintal, sim, gostaria de falar. É uma área de quatrocentos metros quadrados, atapetada de grama esmeralda, cuidada com esmero e dedicação.
As árvores são todas frutíferas e projetam sombras aconchegantes, proporcionando um visual bonito onde se destacam folhagens verdes de várias tonalidades. As fruteiras contemplam-me com ótimos frutos: manga, graviola, limão, acerola, coco, laranja e ciriguela, esta, da família dos spondias purpurea, um pequeno fruto abundante no nordeste do Brasil.
Trata-se, pois, de um singelo pomar que me satisfaz pela vista agradável, pelos frutos saborosos e pelos gorjeios dos passarinhos que vêm juntar-se aos dos meus canários belgas (nascidos e criados em cativeiro, seu habitat natural, portanto, sem serem privados da liberdade).
A passarinhada alegra-me a vida ociosa e já um pouco solitária como é comum a todo aposentado.
O meu quintal também faz fronteira com outros espaços repletos de árvores, de propriedade particular e pública. A grande quantidade de vegetais faz da minha vizinhança um modesto habitat de pássaros dos mais variados gêneros: sabiás, rolinhas, golinhas, beija-flores, periquitos, pombas selvagens, garças… pardais.
As aves costumam exercitar vôos espetaculares ou observatórios sobre o meu quintal, quando não vêm, o que mais frequentemente acontece, saciar-se da comida que costumo oferecer para atrai-las. Delicio-me com suas presenças, ouço os cânticos, os trinados melodiosos, e de algumas, o gorjear nostálgico. A proximidade de minha casa com um lago que circunda a cidade facilita as agradáveis visitas recebidas diariamente.
O caramanchão fica no centro do quintal. Suportado por quatro pilares maciços de ipê e coberto por excelente telhado, é o lugar onde costumo ficar nas primeiras horas da manhã e nos finais de tarde. Ali ouço o gorjeio da passarada voando livremente ou pousada nos acolhedores galhos das árvores. Também fico a ouvir o trinado dos canários belgas em suas gaiolas penduradas nos caibros do telhado. É o meu recanto favorito. Fico horas em edificantes leituras, saboreando o conteúdo de páginas magistralmente escritas por renomados autores da literatura internacional. Não é por esnobação que leio autores estrangeiros, traduzidos para o português; leio-os porque a oferta desses livros supera a de escritores nacionais, talvez por falta de incentivo.
O livro no Brasil é caro.
Editá-los por conta própria é tão difícil quanto sua distribuição. O governo deveria apoiar mais o escritor nativo, custeando-lhe as obras a preços subsidiados, para que pudessem divulgá-las; assim, como faz com a indústria cinematográfica, beneficiária das verbas do Ministério da Cultura, que em alguns casos não se comporta com a honestidade devida.
Voltando ao meu quintal…
Gosto de molhar as plantas nos canteiros ou em jarros bem cuidados. Agrada-me podar os ramos secos e retirar as flores murchas. Sinto-me feliz ao ver a revoada vesperal dos bandos de periquitos. Ouço-os cantando e vejo-os pousados nas palmeiras que ornamentam a piscina de águas azuis, nas quais os pássaros saciam a sede ou se refrescam do calor intenso, provocado pelo sol forte.
Certa ocasião, lia um livro de Scott Turow – Ofensas Pessoais –, quando recebi a visita de um passarinho de plumagem negra; pousou no espaldar da cadeira que faz parte do conjunto de móveis do caramanchão. Cantou de modo singular. O mavioso cantor estava disposto a fazer-me desviar a atenção para ele. Depositei o livro na mesinha de tampo redondo e passei a escutá-lo.
Parou de cantar e perguntou-me:
– Há quanto tempo moras aqui?
Incrédulo, duvidando do que ouvia, respondi:
– Doze anos e alguns meses.
– Vou contar-te algumas histórias ouvidas nos diversos quintais por onde tenho pousado.
Estranhei, porque passarinhos não costumam falar, até quanto eu saiba.
Ele continuou:
– Vôo por estas redondezas há muito tempo – disse-me, após balançar a cauda e revirar o pescoço repetidas vezes, olhando para os lados. Parecia desconfiar da presença de mais alguma pessoa afora eu que o ouvia com atenção. – Aos finais de tarde – prosseguiu –, tenho ouvido muitas conversas confidenciais e visto casos interessantes que desejo compartilhar com você.
Incrivelmente falando, continuou:
– Uma vez, pousado nos galhos de árvore próxima a um terraço de certa casa, ouvi dois homens conversando, sentados em poltronas de vime. Um deles confidenciava ao outro seus problemas familiares:
"Meu filho de dezoito anos consome drogas. O ambiente em casa alcançou o limite da tolerância. O rapaz, não raro, chega alterado, agride a todos, inclusive a mim, o pai, e à mãe que se encontra acometida de forte crise de depressão. Os objetos de maior valor, como jóias, por exemplo, foram guardados em cofre de estabelecimento bancário, por medida de segurança. Várias vezes o rapaz roubou bens domésticos para transformá-los em dinheiro e adquirir a maldita droga. Abandonou os estudos e frequentemente chega em casa com uma mocinha de sua idade, com quem dorme em seu quarto. Sujeita a família a certos constrangimentos. Falta com o respeito e rouba a intimidade do lar. Não adianta reclamar; ele não atende; já não sei o fazer. Temo ser morto por quem, um dia, trouxe à vida. Em seus momentos de insanidade, motivado pelo uso das drogas, torna-se violento. Minha filha mais velha, a cada final de semana chega com novo namorado. Consomem o que há na geladeira, vêm televisão em alto volume… e também dormem juntos, no quarto dela, localizado na parte superior da casa. Somente descem no dia seguinte, à hora do almoço…"
O passarinho voltou outro dia. Eu irrigava as plantas quando ele chegou. Pousou na mesma cadeira e, como da outra vez, chilreava a todo pulmão. Saltitava e balançava a cauda de um lado para outro para despertar meu interesse por sua presença. Finalmente falou:
– Naquele dia, te contei a história da infeliz família que mora aqui próximo. Hoje, contarei a seguinte – disse, depois de temperar a garganta com melodioso trinado:
"Era um final de sexta-feira. O por do Sol estava próximo. Dois homens conversavam sentados sob uma mangueira de densas folhagens. O quintal da casa era amplo e bem arborizado. Cada um segurava o copo de uísque. Eu estava ali, pousado em um galho de árvore e ouvi a conversa. Imprudentemente, como acontece em minhas ncontinências fecais, sujei o ombro do que usava camisa azul-clara, que nem sequer sentiu as fezes mornas, porém inodoras. Os dois conversavam sobre uma grande negociata praticada com o aval de certa autoridade governamental. Dizia o mais velho ter fornecido medicamentos, beneficiado por uma concorrência forjada. Os remédios foram vendidos pelo triplo do preço de mercado e entregues em quantidade inferior à adquirida, pois ele havia engendrado um meio de acondicionar os produtos de forma que cada embalagem comportasse três comprimidos ou vinte e cinco mililitros a menos. Disse ter ficado satisfeito com o negócio, cujos resultados foram repartidos com os agentes do governo. Ouvia a revelação daquele desonesto senhor, quando fui, novamente, acometido de incontinência fecal. Dessa vez não passou despercebida ao cidadão, que olhou para o alto, levando a mão à cabeça. Enquanto ele olhava a palma da mão suja de uma matéria esverdeada, voei para safar-me de possível represália."
Passaram-se dias sem que o passarinho me procurasse para novas revelações. Bisbilhoteiro como era não demoraria voltar com novas estórias. Esperei com certa ansiedade, até que num final de tarde ouvi o seu trinado estrepitoso, do alto de uma ripa do telhado do caramanchão. Possivelmente estivera ali por algumas vezes, sem ser notado, tentando flagrar-me em alguma incorreção que lhe servisse para novas inconfidências; acredito que não exitaria em contá-la a outros, como fizera comigo.
Sem precisar insistir em seu gorjeio característico, voou para o encosto da cadeira que já utilizara como tribuna, e assim começou a falar:
"A história de hoje não foi presenciada por mim. Aconteceu numa noite de céu estrelado e de temperatura elevada. Nessas horas, costumo dormir, descansando as asas dos incontáveis vôos praticados durante o dia. Uma coruja, muito minha amiga, é que me contou tudo. Disse-me, da forma como repito para você:"
"O proprietário da casa viajava com frequência. Nela morava apenas o casal, sem filhos. Os empregados saiam no final do expediente e retornavam no dia seguinte. Quando o marido estava ausente, sua mulher, uma jovem senhora de trinta anos, aproximadamente, muito bonita, dona de um corpo delgado, bem modelado por incontáveis horas de ginástica, costumava receber a visita de um amigo. À beira da piscina de águas mornas, os dois ficavam no maior idílio. A cena repetia-se todas as vezes que o dono da casa estava ausente. Eu, embora sonolenta, como sempre – disse-me a amiga coruja –, não perdia um lance daqueles encontros “calientes”. A cena mais forte, contudo, foi…"
O passarinho voou inesperadamente. Talvez tenha pressentido algum perigo que eu desconhecera. Nunca mais o vi. Ele jamais retornou ao meu quintal. Sinto saudades das estórias que me contava. Talvez esteja morto, vitimado por veneno pulverizado para combater pragas que infestam as plantas da região; ou, quem sabe, aprisionado em alguma gaiola, privado da liberdade e do convívio dos amigos de sua espécie e de algum confidente que o ouvia incrédulo.
Como eu.