A NOTA E O ARTISTA.
( Premiado no concurso nacional
Rubem Braga de Crônicaem 1991.)
...É, moço, hoje estou velha, maltratada, obsoleta... mas já fui muito importante. E olhe que
não faz muito tempo assim, mas creiam, é verdade, já fui importantíssima.
Sim, sim me lembro de quando era nova, novinha em folha. Era bela, cobiçada... As pessoas matavam e morriam por mim, pela minha posse.
Sim, sim lembro-me muito bem desse tempo. Tive uma vida curta, é verdade, mas cheia de experiências curiosas trágicas e engraçadas.
Quando nova fui possuída por grã-finos, políticos, empresários... Eles me admiravam. Quando me olhavam seus olhos brilhavam, seus lábios se elasteciam ostentando um sorriso de satisfação. Todos queriam me ver; Todos queriam me possuir.
Certa vez uma ambiciosa dama fingiu paixão e casou-se com o coitado só porque ele me tinha aos montes. Depois ela o matou para ficar comigo totalmente, ah, que tragédia!
Um empresário só porque me perdeu, incendiou sua empresa para me ter de volta, que coisa estranha...
Um admirador fanático decepou seu membro para me consegui. Isso eu achei patético e sádico.
É, eu era rara e cara. Desprezada apenas por um Poeta metido a besta. Isso eu nunca entendi. Não sei quem ele achava que era. Acho que era maluco.
Depois fui ficando fácil e todos me tinham acesso. Até mesmo operários, que humilhação! Tornei-me tão vulgar que era passada de mãos em mãos:
Mãos negras, brancas, pálidas, rosadas, sujas, limpas, cheirosas, fedorentas, trêmulas, firmes, lisas, calejadas... ah! que sofrimento... era um vai e vém incessante.
Aí veio a humilhação. Começaram a me xingar, debochar e me recusavam. Nossa! Que vexame...
Prossegui com minha involuntária peregrinação. Conheci tanta gente e fui há tantos lugares que nem gosto de lembrar. Às vezes voltava para a mesma pessoa que me passou e ela nem sabia.
Essa achei engraçada:
Uma vez uma criatura bem vestida ofereceu-me ao mendigo pegando-me pelas pontas do dedo para não tocar suas mãos a dele. O mendigo depois de me enrolar com suas mãos imundas e guardar-me em seu bolso sujo, deu-me para o moço da padaria, que passou-me para o taxista, que transferiu-me para o açogueiro, que devolveu-me à criatura bem vestida que me pegou, guardou em sua carteira e levou-me para sua casa. Se ele soubesse o que o mendigo fez comigo...
Tenho muitas histórias pra contar. Conhecí e vivi de tudo:
Estive com tuberculosos, aidéticos, malucos, badameiros... Fui amarrotada, amassada, pisoteada, rabiscada, cuspida, até já me fizeram de papel higiênico e, olhe que de higiiênico a essas alturas não tenho nada, pensando bem nunca tive, Que saga!
Bem, nada mais importa agora. Hoje não valho mais nada e ainda por cima sou uma agente transmissora de doença infectocontagiosa, ah, que trágico fim.
Logo mais serei incinerada. Muitas de mim ainda estão por aí, mas terão o mesmo destino.
Aqui deixo minha mensagem de protesto e reflexão, embora saiba que não me darão ouvidos, mas como dizia Heitor Villa Lobos, “Escrevo minha obra como quem escreve uma carta ao destino sem esperar respostas”.
A propósito, O Villa Lobos também será queimado comigo.