O iluminado cego

Mariano escalou os trinta degraus da íngreme escadaria da igreja matriz. Apoiado no velho cajado, testava cada degrau à procura da segurança necessária para efetuar, em seguida, um novo passo.

Ele era cego e andava sozinho pelas ruas. Sempre desprezou o auxílio de um guia, por julgá-lo dispendioso, quando não desonesto.

Poucas vezes recorrera à ajuda de Joãozinho, esperto garoto de oito anos. O menino trocava a moeda colocada no recipiente, à frente do cego, por outra de menor valor, trazida consigo para a finalidade espúria. Mariano sabia disso por dedução: quando ia sozinho ao ponto onde esmolava, o apurado revelava-se maior.

As poucas vezes em que serviu como guia a Mariano, Joãozinho aprontou muitas e boas; era mestre em retirar da bacia do pobre pedinte o que se lhe davam de comer. Qualquer coisa, principalmente frutas. Quando a oferta superava a unidade, ele surrupiava as outras. Mariano, por fim, dispensou o garoto. Valeu-se da máxima: “é melhor só do que mal acompanhado”.

O pai do menino lamentou a perda dos rendimentos auferidos pelo filho em sua efêmera atividade como guia de cego.

***

Aquele era um domingo.

Mariano, à porta da igreja, mendigava às almas caridosas.

Foram poucos os fiéis que compareceram ao templo, naquela manhã. A maioria cumpria um mero ritual, desatenta à pregação do padre.

O sacerdote falava mais dos movimentos sociais e das reivindicações do trabalhador sem-terra do que da Palavra de Deus. Coisa de padre socialista, de idéias vermelhas tanto quanto o vinho bebido exageradamente na celebração da Eucaristia.

Todos os domingos eram assim. Tão logo iniciada a missa, Mariano ouvia as orações, os cânticos e a pregação (?) do padre, vazia de conteúdo espiritual, porém recheada de menções depreciativas à política social do governo, segundo ele, esquecido do povo faminto e doente.

Nessas ocasiões, o vigário orientava a congregação a escolher bem o candidato nas próximas eleições. Jamais esquecia de lembrar nomes vinculados aos movimentos sindicais, principalmente integrantes do MST.

Naquele dia, como em tantos outros, poucos fiéis estavam atentos ao sermão proferido pelo sacerdote. Liam o boletim distribuído à entrada do templo, indiferentes ao seu conteúdo; Se Mariano não via, eles pouco ou quase nada ouviam.

Sentados, aguardavam o tempo passar.

Desmotivados.

Em dado momento, postado no centro da porta principal da nave, Mariano bateu com o cajado no assoalho. O som ressoou e a congregação despertou.

O eco surpreendeu.

Acordou os sonolentos.

– Chega! – gritou o cego.

Os fiéis voltaram-se atônitos.

O padre parou de falar. Ergueu a cabeça e olhou em frente, boquiaberto:

– O que se passa? – perguntou intrigado.

– Chega! Esta é a Casa de Deus. Fale de Jesus, da salvação que somente Ele proporciona. Ao invés de informações sociais, políticas ou meramente mundanas, diga aos fiéis que só Cristo salva o homem de seus pecados…

Mariano não podia notar a reação do auditório. Não conseguia ver a assistência, mas imaginava a surpresa daquelas almas.

Aproximou-se dos presentes com passos firmes, rosto voltado para o altar, onde supunha encontrar-se o vigário, e continuou:

– Fale ao homem amargurado, angustiado, ansioso, cansado, oprimido e enfermo; ao pecador carente do perdão Divino, desejoso da salvação de sua alma. Ensine-o a cultivar o amor, a fraternidade, a igualdade e a justiça. Afirme o propósito de Deus para o homem; diga-lhe para não se angustiar, pois Jesus é “o caminho, a verdade e a vida”. Mostre ao pecador o que diz o Salmo 46, que conheço de cor, por ouvi-lo repetidas vezes: “Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia”.

O padre ouvia-o silencioso e assustado.

A congregação, também.

Nunca se deram conta daquele mendigo à porta da igreja, a esmolar a caridade alheia. Ele era cego para ver a qualquer um deles, porém, parecia enxergá-los espiritualmente. Naquele momento, ensinava ao próprio vigário a aplicar o remédio para curá-los das doenças do corpo e da alma.

Mariano continuava falando:

– Jesus disse: “Vinde a mim os cansados e oprimidos e eu os aliviarei; o meu jugo é suave e o meu fardo é leve...” Ele também afirmou: “... a tua fé te salvou; vai e não peques mais”.

A seguir, calou-se.

O padre ficou imóvel.

Os fiéis trocaram olhares entre si, como a dizerem: “quem teria mandado este falar a nós, neste domingo?”.

Mariano desceu a escadaria da igreja, apoiado em seu velho cajado. A certa altura do percurso, tropeçou e caiu.

Rolou escada abaixo até o último degrau.

Os fiéis olhavam do alto a descida do “iluminado cego”. Socorrido, foi erguido pelos braços.

Seu rosto resplandecia.

Ele não enxergava desde os primeiros meses de vida, quando caíra e batera a cabeça no chão.

Perdera a visão acidentalmente.

Não se lembrava do rosto da mãe que o amamentou nem da fisionomia do pai. Reconhecia os irmãos pela voz.

Naquele instante, porém, tendo batido a cabeça fortemente no chão, voltou a ver.

Contemplou o firmamento, as nuvens, as árvores, os pássaros, a cor da roupa, o povo que o ouvira naquela manhã…

Mariano jogou fora o velho cajado e desapareceu em uma rua qualquer.

A multidão, atônita, gritava admirada:

– Milagre! Milagre!