Lágrimas de terror

"Era uma vez...” Assim se começava a contar estórias, no meu tempo de criança, quando a luz elétrica não fazia parte da vida dos habitantes do Sertão Nordestino, principalmente nas pequenas cidades. A energia elétrica era servida apenas em comunidades maiores e, mesmo assim, somente à noite.

Quando os geradores pifavam, ficávamos até noventa dias sem luz, ouvindo o cantar dos grilos, o uivo dos cachorros, o piado da coruja agourenta.

A escuridão facilitava as ideias pavorosas.

O medo e as superstições aterrorizavam a todos.

Nós, meninos e meninas, sofríamos com o escuro, de onde, supúnhamos, vinham os fantasmas.

À noite, costumávamos contemplar o caminhante à distância, com a tênue luz da lanterna balançando conforme o movimento do corpo; nessas ocasiões, fazíamos conjecturas sobre a identidade da visita que se aproximava. E até fazíamos apostas, nem sempre cumpridas.

No interior das casas, as lamparinas e os lampiões a querosene amenizavam a escuridão.

As calçadas das residências eram ocupadas por pessoas sentadas em cadeiras, espreguiçadeiras ou mesmo no chão. Formavam animadas rodas-de-bate-papo para contar estórias, quase sempre de fantasmas.

Os adultos ficavam amedrontados e as crianças apavoradas.

Não existia, na época, outra maneira de passar o tempo. Até a hora de dormir, o jeito era sentar-se e contar estórias.

Os saraus eram desconhecidos naquelas casas humildes, de gente simples e inculta. Ler, à luz de lamparina, afetava a visão, diziam os poucos que sabiam fazê-lo, um número bastante irrisório.

Essas reuniões literárias somente aconteciam nas residências dos ricos, onde as mulheres tomavam parte do acontecimento sem a presença dos maridos, separados em salas isoladas para jogar baralho, fumar bons charutos e deliciar-se com ótimos licores.

A leitura pouco empolgava, até mesmo entre famílias abastadas, exceto junto àquelas que tiveram parentes chegados da Europa. De Paris, especialmente. Precisavam imitar os franceses não apenas no idioma que se tornara chique falar, como, também, nos usos e costumes. Ler – embora raro – era um deles.

“Era uma vez...” “... passou por perna de pato, depois por perna de pinto, Senhor Rei mandou dizer que contasse cinco!” – Assim começavam e terminavam os narradores, dando o mote para que outros os sequenciassem.

Longe estavam de ser comparados a uma Cheherazade, das Mil e Uma Noites, mas, contavam das suas.

Meninos e meninas eram os principais ouvintes das estórias que falavam de reinos longínquos, de belíssimos castelos, de lindas princesas, de príncipes valentes, de animais ferozes, de “papa-figos”, de lobisomens...

Amedrontados, não saíam de perto dos adultos.

Os olhos estavam sempre atentos aos movimentos e os ouvidos perscrutavam os mais leves ruídos ao redor.

O medo imperava.

O difícil era atender ao pedido de um adulto. Eles o faziam por pura maldade:

– Ó, José, vá lá dentro e me traga um copo de água! – pedia a mãe do garoto traquina, perturbador do silêncio indispensável à narrativa.

O pobre menino negava-se a cumprir a ordem. Só iria se o irmão, um pouco mais velho, o acompanhasse. E este só o faria se a “mãe pidona” demonstrasse sua autoridade, naquelas horas imposta com absoluta firmeza.

E lá iam os dois, temerosos, assustados, os olhos esbugalhados, olhando para os cantos mais lúgubres, principalmente para onde, em dias de intensa tristeza, fora velado o corpo de uma pessoa da família.

Lá dentro, o ambiente estava quase às escuras, iluminado pela frágil luz da lamparina. José pegava um copo qualquer e metia-o no pote de barro, sem preocupação com a higiene.

Cumprida a tarefa, saía em desabalada carreira atrás de Manoel, autor da idéia alguns segundos antes dele. Quando chegava ao destino, o copo estava pela metade.

A mãe não reclamava, pois a sede fora pretexto para a pequena maldade. Conforme dizia, essas coisas serviam para a criança não crescer com medo de bobagens; não revelava que ela própria somente dormia após a chegada do marido, egresso do jogo de pif-paf ou da casa de um amigo comum.

As noitadas nas casas dos vizinhos tinham como finalidade principal passar o tempo, forçar a chegada do sono e, como de costume, contar estórias de “Troncoso” ou recitar versos escritos por poetas da literatura de cordel, grandes autores de absurdas lendas populares.

O Pavão Misterioso era um “clássico” que muitos sabiam de cor.

Todas as crianças eram assim, tímidas, desconfiadas, com medo do desconhecido. Não apenas José e Manoel. O temor apossava-se de cada uma naquelas noites escuras, quando os ouvidos insistiam em ouvir e o cérebro teimava em não esquecer aquelas pavorosas estórias.

– “Certa noite – dizia a narradora –, um ladrão abordou uma jovem em rua de pouco movimento. Como ela não trazia dinheiro, o assaltante resolveu levar o lindo anel que usava no dedo anular da mão direita, presente do marido, a quem muito amava. A senhora defendeu-se inutilmente e terminou sucumbindo à sanha do assassino.

O desalmado insistia em retirar o anel do dedo da vítima, porém este não cedia aos seus esforços criminosos. Contrariado, sacou da faca presa à cintura e cortou o dedo da jovem, levando-o consigo, juntamente com a jóia”…

…– “O tempo passou. O assassino, acostumado ao crime, gozava impunemente a liberdade; não mais se lembrava do delito praticado; a consciência jamais o acusara de tantos outros assassinatos cometidos com a mesma frieza, com o mesmo desrespeito à vida, para ele de pouca ou de nenhuma importância.

Outra noite, vagueando pelas ruas desertas, à caça de nova vítima, o bandido viu passar uma moça encantadora, de quem se aproximou sorridentemente. A garota foi muito receptiva à paquera, sorriu, insinuou-se… Por ser muito bonita, despertou o interesse do bandido.

Animado com a receptividade, o delinquente tomou as mãos da jovem entre as suas, afagou-as e levou-as aos lábios. A certo ponto, notou a falta do dedo anular da mão direita. Então, perguntou:

– O que aconteceu ao seu dedo?

– Não foi vocêêê?

As crianças estavam compenetradas, atentamente ligadas à narrativa e emocionalmente envolvidas. Ao sentirem a mão da contadora de estória, quase a tocar-lhes os rostos, e o pavoroso grito de “não foi vocêêê?”, fizeram grande alarido, visivelmente perturbadas.

Os adultos riram.

Os pequeninos choraram.

De medo.