Ouvidos moucos

Mário nasceu em propriedade rural situada no interior da Bahia. Na infância, ajudava os pais nas lavouras de cacau, juntamente com dois irmãos mais velhos.

A vida não lhe sorriu como ao filho do patrão, Gerson. Nas férias escolares, o garoto vinha de São Paulo passar alguns dias na fazenda. Gostava de passarinhar, andar a cavalo e tomar banho nos rios na época das chuvas.

Sempre que o patrãozinho visitava a fazenda, contava-lhe sobre a vida na cidade: o conforto do chuveiro elétrico; os programas de televisão; os passeios aos shoppings; o movimento diuturno dos automóveis; o metrô; as pessoas nas ruas, apressadas, algumas vestidas com elegância, outras trajadas com espalhafato, chamando a atenção para si.

Mário lembrava da cidade descrita por Gerson. Um dia iria conhecê-la, morar naquele lugar cheio de conforto, andar no metrô, trajar paletó e gravata como os homens de negócio. Dizia isso aos irmãos e ao pai nas escuras noites iluminadas à luz do pequeno lampião pendurado na parede da sala onde costumavam aguardar o sono.

- A cidade não tem todos esses encantos, Mário, lembrava seu Manú, vizinho e amigo da família, que já morara em São Paulo quando solteiro.

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- O mundo lá fora não é só maravilha - dizia seu Manú. A violência é assustadora; eles assaltam, roubam, sequestram, possuem a mulher à força, matam. Fazem de tudo. Se um dia você for para a cidade grande, tenha cuidado, principalmente para não se envolver com drogas. Conheci nordestinos que foram à procura de emprego, de morada digna, de melhores condições de vida, e hoje vivem miseravelmente em favelas imundas, sob o império de traficantes.

Quantos já morreram, abatidos pelos soldados do tráfico? Um sem-número deles!

O tempo passou. Aos vinte e três anos, Mário finalmente viajou a São Paulo. Realizou o sonho de adolescente. Levou consigo novecentos reais, produto da rigorosa economia feita durante meses. Chegou a capital paulista a bordo de ônibus clandestino que fazia duas viagens por mês, partindo de São José. Percorreu mais de dois mil quilômetros, boa parte em estradas esburacadas, sem conservação, verdadeiro convite à morte.

Ao chegar, foi recebido pelo amigo Firmino, conterrâneo residente na cidade há algum tempo e que, como ele, fora à procura de trabalho, de vida melhor e mais agitada.

Mário deslumbrou-se com a paulicéia.

O que viu superou os conhecimentos teóricos que tinha do lugar. Gerson economizara demais em suas informações. São Paulo era uma megalópole, por cujas vias fluía o trânsito de caminhões, ônibus, automóveis, motocicletas, inclusive o metrô.

Grandes viadutos facilitavam o tráfego intenso e milhões de transeuntes ocupavam as calçadas nas ruas. Ele vira, também, o que lhe falara seu Manú, o amigo da família: barracas cobertas de plástico, vendendo pastéis, cachorros-quentes, refrigerantes, cachaça e até drogas.

Meninos pediam esmolas nos faróis, quando os carros, parados, formavam filas quilométricas; debaixo dos viadutos e das marquises de algum prédio fechado, mendigos acomodavam-se deitados em improvisadas camas de papelão, cada um com uma garrafa de cachaça para animar a vida e esquecer o sofrimento diuturno.

Grupos de garotos cheiravam cola ou fumavam craque, enquanto alguns companheiros seus batiam a carteira de um velho ou a bolsa de uma senhora grávida.

A noite chegou e com ela as luzes cintilantes dos altos edifícios. Mário já estava com o pescoço dolorido de tanto erguer a cabeça para ver os prédios de muitos andares, com os quais ficou encantado. Quase não acreditava no que via. Satisfeito, dirigiu-se com o amigo ao terminal rodoviário. Ali, pegariam o ônibus que os levaria a casa de Firmino, situada na periferia.

O bairro em que iria morar era bastante pobre. Contrastava com a opulência dos edifícios do centro da cidade, principalmente da Avenida Paulista. Ruas irregulares, sem ordenamento, sem asfalto, iluminadas por gambiarras; água servida por chafariz comunitário; ponto de ônibus distante a mais de oitocentos metros; esgoto sanitário a céu aberto… Tudo isso tornava o bairro um ambiente insalubre.

Seu Manú estava com a razão. “Nem tudo eram flores”, como dissera ele, naquele dia em casa de seus pais.

A nova residência de Mário tinha quatro cômodos: sala, quarto do casal, cozinha e banheiro. O anfitrião decidiu: a visita dormiria no surrado sofá da pequena sala em que uma televisão animava as noites que antecediam à hora de dormir.

Firmino trabalhava como servente de pedreiro e no dia seguinte levou Mário ao mestre-de-obras. Contratado, passou a ganhar uma diária de trinta reais. Fez boas amizades, conheceu garotas que trabalhavam como domésticas na periferia da obra, e passou a torcer pelo Corinthians. Assistia aos jogos dominicais em que a agremiação participava nem sempre como vencedora.

O trabalho intenso servia para afastar as saudades de casa e dos muitos amigos deixados por lá. As jovens paulistanas eram avançadas, extrovertidas e fogosas; contrastavam com a timidez de suas conterrâneas.

Dos cento e oitenta reais recebidos ao final de cada semana, Mário contribuía com oitenta para ajudar no pagamento do aluguel e das refeições, não raras à base de feijão, arroz e ovo cozido. Para ter “sustança”, comia até quatro ovos por dia.

Cento e vinte por mês!

Todo dia trinta remetia pelos Correios cinquenta reais para os pais e o restante gastava com a cervejinha, consumida moderadamente com as namoradas.

Mário era feliz a seu jeito.

Dois anos depois, regressou a São José, sentado em uma cadeira de rodas, por ter sido vítima de bala perdida durante tiroteio entre polícia e bandidos.

Em casa, encontrou o pai doente, numa cama desconfortável, acometido de acidente vascular cerebral; a mãe, mais idosa e cansada, cuidava de todos e de tudo.

Os irmãos mais velhos preparavam as malas para a viagem que os levaria a São Paulo.