Simplesmente José
José sentia-se cansado. O físico não era mais o exibido aos trinta anos, quando os ombros largos, os braços musculosos, as pernas rígidas e o tórax ligeiramente protuberante davam-lhe aparência atlética, insinuava virilidade e despertava desejo nas moças, que o viam passear exuberante, bem vestido, desfilando garbosamente pelas calçadas.
Naquela manhã de inverno, o dia cinzento e frio contrastava com as ensolaradas tardes em que José, na juventude, deixava-se curtir ao sol para bronzear a pele. Curvado sobre a pia do banheiro, escovava a dentadura postiça, para depois fazer a barba de cabelos brancos como a neve.
O espelho, uma peça envelhecida, já gasta e desbotada, refletia a marca do tempo estampada em seu rosto e no corpo obeso. A cabeça lisa, brilhante, contornada por ralos fios de cabelos, abrigava a face enrugada, revelava as pálpebras caídas, os olhos lacrimosos e opacos, a boca desdentada, o sorriso apagado.
O corpo de José, que antes media um metro e setenta, parecia ter diminuído de tamanho e aumentado em peso e largura. Os sessenta e oito quilos de então, pesados quando ia à farmácia comprar o indispensável biotônico, responsável pelo corpo atlético, foram substituídos pelos atuais noventa quilos.
A barriga excedia os cento e quinze centímetros.
O tempo revelara-se implacável.
Enquanto José analisava sua decadência física, o passado povoava-lhe a mente com lembranças de felizes momentos.
Lembrou-se da companheira, com quem viveu por três décadas; recordou sua beleza física e seu espírito de compreensão e compartilhamento.
Recordou-se do único filho, morto em terrível desastre de automóvel, partindo sem produzir “semente” que garantisse a continuidade do nome da família.
Riu, silenciosamente; chorou, mudo, ao sentir no peito as consequências da constrição das artérias coronarianas, que reclamavam por fluxo sanguíneo. Limpou os acinzentados olhos com a manga esquerda do pijama, fechou a torneira que jorrava água desnecessariamente, e vestiu-se.
Estava na hora do café matinal.
José foi à cozinha, ferveu água e preparou o desjejum. Duas pequenas broas de milho foram degustadas a generosos goles do café fresquinho, acabado de preparar.
Ele sempre se orgulhou de seus dotes culinários. Lavou a louça, arrumou a pequena mesa e dirigiu-se à sala decorada com singela mobília.
Sentado na velha poltrona, pôs-se a ler. A leitura era sua principal distração. Adormeceu por alguns instantes e acordou quando o livro caiu-lhe das mãos.
Sentia um pequeno desconforto no lado esquerdo do peito, uma dorzinha que aos poucos subiu pelo pescoço, até confirmar próximo acidente isquêmico. Consultou o relógio: nove horas. Tentou levantar-se, mas não conseguiu.
A dor aumentara de intensidade; não lhe dera chance de pegar o remédio colocado sobre a mesinha de centro. Um infarto pôs fim à solitária vida de José. A morte levou-o a um lugar prazeroso, menos sofrido, perto da amada e do filho.
Assim morreu José, sozinho como vivera em seus anos de viuvez, marcados por solitárias noites insones. Ninguém chorou a sua morte. Ele não deixou descendentes para dar continuidade ao nome da família.
Um nome simples como o dele:
Silva. José da Silva.
Ou simplesmente José.