Recordações
Há alguns meses, fui impossibilitado de sair à rua por ter emprestado meu automóvel a minha filha caçula, que teve o seu carro abalroado. Fiquei em casa “de molho”, pensando na vida.
Aproveitei para lembrar fatos pitorescos e interessantes vividos na infância e na juventude; alguns me envaideciam, faziam-me alegre e saudoso, enquanto outros me cobriam de tristeza e de arrependimento. Conforme a lembrança, ria, chorava ou sentia vergonha dos erros cometidos.
Velho é como museu, vive do passado. E sem ocupação, aposentado, aí, sim, invoca-o com maior frequência, possivelmente para justificar os fracassos do presente.
Um sessentão como eu, com alguns anos já reivindicados pelos setenta, tem muitos acontecimentos gravados na memória, prestes a ser acometida pela amnésia. Por isso, os recorda com certa frequência. Lembra os dias de juventude – às vezes irresponsável –, os amores marcantes, as conquistas no campo profissional, os velhos e inesquecíveis amigos.
Vez ou outra me vem à lembrança os tempos de menino; de minha infância vivida no sertão, órfã, carente e sofrida; também alegre, porque na infância os sentimentos se renovam com rapidez, sem deixar marca risível ou mágoas duradouras. A criança alegra-se em tudo o que vê e goza tudo o que faz com prazer absoluto, verdadeiro e puro.
Há pouco mais de um mês, escrevi uma crônica em que relato momentos de entretenimento ao ouvir, juntamente com outros garotos da minha idade, os contadores de estórias narrarem fábulas inesquecíveis ou recitarem versos de autoria dos poetas cordelistas do Nordeste. As narrativas eram feitas nas noites escuras, quando não dispúnhamos da energia elétrica, farta, de hoje.
Naquela oportunidade, relembrei momentos interessantes de minha infância. Nas noites sem luz elétrica, nem sempre ficávamos a ouvir histórias. Quando os adultos direcionavam as conversas para assuntos mais sérios, e dispensavam as nossas presenças, inventávamos divertidas brincadeiras.
Gostávamos de brincar de mocinho e bandido.
Imitávamos os filmes assistidos nas matinês domingueiras.
Certa vez, “prendemos” um “bandido”; para que não fugisse, amarramos o pobre infeliz a um poste, enquanto procurávamos o restante da “quadrilha”. Não sei se por esquecimento ou por maldade, não resgatamos o “prisioneiro” ao final da brincadeira.
O coitado ficou entregue à solidão da noite até ser lembrado pela mãe, que horas depois o procurava pela vizinhança.
Fomos lá resgatá-lo, acompanhados dos pais. Soltamos o “prisioneiro”, coitado, submetido, naquela ocasião, a sua primeira tortura, se é que enfrentou outras na vida adulta.
Suas orelhas ficaram vermelhas por terem sido puxadas com força; o pai encarregou-se da orelha direita e a mãe, da esquerda. Nós, os “policiais”, também fomos castigados: dormimos aquecidos por vigorosas chibatadas. As pernas marcadas por fortes vergalhões testemunhavam o preço exagerado, pago pelo “esquecimento”.
Nesse dia, os pais sustentaram as calças pelas mãos, para não vê-las caída entre os pés, depois de terem retirado o cinto com o qual castigaram os filhos. Alguns, de barrigas mais proeminentes, prenderam a respiração para evitarem o vexame de exibirem as cuecas em público.
Por pouco, não foram ouvidos risos incontroláveis de “mocinhos e bandidos”.