O OUTRO.

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

Assim brada repetidas vezes batendo nos joelhos energicamente e com os punhos fechados, o farrapo humano sentado ao meio-fio de minha rua.

De minha janela, um apartamento no primeiro andar posso vê-lo e ouvi-lo.

Há meses que ele vém todos os dias não sei de onde, prosta-se ali e inicia sua ladainha:

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

Indago-me sobre a quem ele está querendo dirigir essas palavras.

Seria ao político eleito?

Seria a vizinha do segundo andar que sempre fecha sua janela quando ele chega?

Será a mim?

Será a Deus?

Ou será a si próprio?

Talvez seja ao mundo.

Provavelmente protesta contra a sociedade que o ignora só porque ele não sabe que hoje é domingo, em que ano estamos, o nome do presidente da república e, que sexta-feira, a bolsa de valores do Rio de Janeiro fechou com alta de 0,5%.

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

E assim prossegue horas a fio.

Ao seu lado há um saco imundo que guarda e protege com muito carinho. Acho que é seu único amigo, além de um cão sardento e faminto. Os únicos que lhe entende e faz companhia.

O saco está cheio de objetos. Um dia o vi tirando-os de dentro. Havia uma bola de futebol murcha, uma escova de cabelos, um pedaço de pão duro, uma página velha de jornal onde podia se vê a foto de A.C.M exibindo um largo sorriso, uma panela amassada, um pé de sapato furado e vários outros objetos obsoletos.

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

Dá pra sentir o forte odor que exala de seu miserável corpo e de sua inusitada indumentária.

Quase não se vê seu rosto coberto por seus cabelos e barbas longas.

Em um certo momento ele olha pra mim. Nossos olhos se encontram, eu estremeço e fico estático. É como se eu ficasse hipnotizado. Como se nos fundíssemos, transformássemos em uma só pessoa. Vi-me gritando para dentro:

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

Ninguém me ouvia, ninguém se importava. Apenas meu apartamento vazio, mas cheio de objetos:

Televisor, mesas, dvd, aparelho de som, quadros e muitos equipamentos valiosos. Mas para mim eles nada valiam. Então eu continuava a gritar:

- Eu estou aqui!

- Eu estou aqui!

Quando voltei a mim, o farrapo humano havia parado de silenciado.. Estava indo embora como sempre fazia ao por do sol.

Ainda perplexo, observei-o partir levando consigo seu saco e seu cão. Duas lágrimas escorreram em meu rosto.

Em breve não o verei mais alí. Qualquer dia desses não mais voltará.

Então a vizinha do segundo andar não precisará fechar sua janela.

Ninguém saberá o que aconteceu com o louco do saco acompanhado com um cão, nem com o moço do apartamento do primeiro andar.

Francisco Piedade
Enviado por Francisco Piedade em 31/10/2009
Reeditado em 21/02/2011
Código do texto: T1897849
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