AFRO REGGAE: A VEZ E A VOZ DA INDIGNAÇÃO

Vi um homem ferido em sua dignidade. Um leão. Ferido, sim, mas não acuado. Indignado e sem medo; revoltado e sem meias palavras. Um homem que olhou nos olhos da polícia, dos políticos, da imprensa e da sociedade, ao falar de sua revolta e gritar o desejo de justiça... mostrar que a indignação venceu o medo. O sonho de uma sociedade melhor venceu em seu peito a acomodação comum dos dias de hoje, quando as pessoas se prendem nos condomínios. Nas mansões ou casebres. Nas torres ou tocas, chalés ou palafitas, tomadas pelo mesmo sentimento de acomodação e covardia.

Ver aquele homem desbravar o silêncio, quebrar a rotina das velações, dos esgueiramentos e panos quentes, para protestar com firmeza e eficiência, pelo amigo morto, me tocou. Dispensou os mosaicos das câmeras, a distorção de voz e todas as outras formas de anonimato, para dizer que exige justiça. Ele não pediu; exigiu. Disse abertamente, que os policiais envolvidos no caso são bandidos, marginais, e não aceitou as minimizações da corporação nem da imprensa. Cobrou reportagens completas, exibição integral das imagens que mostram a participação dos "bandidos fardados" e deixou bem claro que não sossegará enquanto os culpados não forem punidos.

Ouvi muita gente afirmar que esse homem pode se considerar morto. Foram muitos os chavões do tipo "é melhor um covarde vivo...". Mas não. Ele está muito vivo. Mais vivo do que todos nós, que nos acovardamos vendo nossos amigos, pais, filhos e outros familiares morrendo pelas mãos de bandidos de ambos os lados. Pode ser que ele morra em pouco tempo, vítima de vingança, mas esses dias de vida terão valido mais a pena do que os muitos anos a mais que alguns ganham de esmola, graças ao silêncio. Graças à conivência forçada pelo medo egoísta de morrer também... de ajudar a comunidade ou o país a ficar melhor, sob o risco de não viver para ver.

Foi vendo a indignação braçal, de atitude, voz e vez desse homem, que percebi o quanto calo, durmo e me acomodo enquanto o mundo fica pior, graças a isso. Perdi, perdemos quase todos, a capacidade da indignação; a cidadania da denúncia; a coragem de vencer o medo. Acomodei-me na sobrevivência e deixei de viver, dando espaço cada vez maior aos maus, tornando-os vencedores. Muitas vezes ajudando a enaltecê-los e torná-los admirados pelo poder destruidor que ostentam. O "leão ferido" é um espelho no qual precisamos reconhecer os vermes intactos que pensamos que temos sido.

*** Ao diretor executivo do Grupo Afro Reggae, José Junior, na sua luta pela punição dos culpados no caso do assassinato de seu amigo, parceiro e coordenador do grupo, Evandro joão Silva.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 24/10/2009
Reeditado em 24/10/2009
Código do texto: T1884573
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