A Crônica da Cidade: O Cemitério
Enquanto caminhava pelas ruas do bairro, procurava realizar um exercício comum entre os historiadores, enxergar o aqui e agora e ao mesmo tempo perceber o passado em cada esquina, em cada fachada antiga, nos beirais, quintais...
Ao passar em frente ao Cemitério não resisti, adentrei o portal, buscava os túlmulos mais antigos, de preferência os que possuíam uma foto em preto e branco.
Então fitava aquela imagem, detinha-me por longos minutos, vez por outra passava alguém e com certeza tomava-me por um insano qualquer.
Conversava com as fotos, qual sua história, quais foram seus amores, suas dores, suas alegrias, anseios?
O Cemitério Municipal do Boqueirão, surgiu lá pela década de 40, quando o terreno foi comprado pelos menonitas, seu antigo proprietário era Pedro Siemens.
Aliás, a casa que foi do Sr. Siemens, hoje é utilizada como sede da administração do cemitério.
Nesta época era comum que os enterros fossem fotografados, pois as longas distâncias, por vezes, impediam os familiares que viviam em outros estados pudessem comparecer.
No Boletim Informativo da Casa Romário Martins, volume 22, número 116 de agosto de1995, consta uma entrevista concedida pelo Sr.Jacob Duck, onde o mesmo relata : "Mas tinha que ser legalizado e a prefeitura, eu tenho a impressão de não permitia um cemitério particular. Assim, como me consta, a comunidade teve que doar essa área para a prefeitura. Mas cada um que era sócio fundador recebia uma pequena parte para enterrar seus mortos. E assim, nas primeiras quadras da frente, estão muitos da nossa gente que faleceram."
Muitos podem achar estranho, este transitar pelo cemitério, mas ali existem muitas histórias, silênciadas, apenas esperando que alguém as rememore, a linha entre a vida pulsante e a morte é tênue.
O processo histórico segue, embora muitos nem se apercebam, vivendo freneticamente, o ritmo acelerado parece fixar-se no aqui e agora. Interessante pensarmos sobre estes espaços frequentados apenas em dia de enterros ou finados.
Durante a Idade Média, a vida social entre os túmulos levou a Igreja tentar controlar a utilização deste espaço.
A população ,de grande parte das cidades européias, buscava divertimento, moradia, além disto a cidadania era exercitada ali mesma, comum era ouvir juízes proferindo sentenças, administradores informavam os aldeões sobre suas realizações.
Joana d'Arc foi julgada pelo tribunal eclisiático no Cemitério de Ruen, na França.
Era nos cemitérios também, que se pronunciavam as sentenças de morte aos leprosos, expulsava-se o doente do convívio em sociedade entregando ao mesmo os objetos de identificariam sua condição: as luvas, a gamela e a ruidosa matraca, com que anunciava sua passagem, este ritual era uma espécie de aviso para que as pessoas sãs se afastassem.
Eram encontrados nos cemitérios medievais também os "carniceiros" os açougueiros de hoje, lojas e tabernas onde podia-se desfrutar do vinho.
Obviamente, havia um atrativo específico para os comerciantes da época, ali no cemitério estavam isentos do pagamento de taxas, alvarás, impostos e a grande circulação de pessoas lhes era propícia.
O comércio tornou-se tão popular nos cemitérios que em 1402, na cidade de Paris os foi proibida a exposição de mercadorias sobre os túmulos, já que os mesmos serviam como uma espécie de vitrine nde eram dispostos livros, roupas, panos.
Contudo, frequentar um cemitério medieval durante o período noturno era desaconselhável, o escritor Fraçois Rebelais advertiu que" pedintes, mendigos, e miseráveis" vadiavam entre os túmulos.
Rebelais após presênciar o cotidiano em cemitérios medievais escreveu:"Paris é um bom lugar para se viver, mas não para morrer".
Ao final da Idade Média, a Igreja romana criou uma série de imposições, afim de acabar com a efervescência generalizada, ficaram vetadas vendas de pão, aves, peixes, carnes, bebidas, enfim quaisquer produtos, exceto as velas.
Além do comércio as pessoas costumavam beber, dançar sobre os túlmulos o que causava constantes brigas.
Em tempos de guerra os cemitérios serviam como verdadeiros refúgios, se os conflitos perdurassem por muito tempo, os aldeões construíam pequenos quartos em seu interior.
No ano de 878, o Concílio de Troyes gerou as condições perfeitas para fomentar a construção de moradias nos cemitérios, embora não fosse esta a intenção.
Através deste Concílio ficou determinado seria considerado um grave sacrilégio qualquer roubo em igrejas ou cemitérios, e alguns clérigos mais ávidos pelo lucro, passaram a alugar pequenos lotes.
Haviam também as chamadas "reclusas", mulheres que, por devoção, acabavam se confinando em casinhas, algumas atingiam uma vida longa, chegando a viver 46 anos, foi o caso de Alix la Bourgotte, reclusa do cemitério dos Inocentes , homenageada pelo rei Luís XI.
Neste mesmo período três mulheres foram confinadas em cemitérios, uma delas por ter assassinado o marido.
Em meio á tanta utilização deste espaço, muitas vezes faltava lugar para enterrar os mortos, triste ironia.
Ao analisarmos as rupturas na história, vemos que nem sempre os cemitérios foram este espaço de silêncio, onde hoje quem se atreve a passear e pesquisar o passado é tido como, no mínimo "estranho".
Convido o caro leitor ou leitora a realizar um passeio pelo Cemitério do Boqueirão, mas isentos de dor ou melâncolia, uma forma de se conhecer um pouco mais sobre um passado tão presente em nosso cotidiano urbano.
OBS: A pesquisa realizada para escrever esta crônica foi realizada no Boletim Informativo da Casa Romário Martins - CURITIBA VOLUME 22 AGOSTO/1995 e na Revista História Viva, nº 67, Ano VI, Artigo " Os Animados Cemitérios Medievais, pela Historiadora especializada em estudos medievais Séverine Fargett-Vissière.