Crônicas de Sala de Aula: Sobre Patrimônio Histórico

Precisava abordar com meus alunos a questão do Patrimônio Histórico. Como não queria entrar á sêco no assunto resolvi escrever uma pequena narrativa sobre o tema, com o objetivo de chamar mais a atenção, expliquei que ia ler para eles a história de um homem que foi internado em um sanatório apenas por se aperceber que uma velha casa lhe dizia muita coisa. Iniciei a leitura: "Enquanto caminho pelas ruas do centro da velha capital percebo com minúcia cada fachada antiga, algumas revigoradas, outras sepultadas na melancolia que lhes imputou o passar dos anos. Bem sei que poucos muito poucos ao passar defronte uma destas senhoras percebe a tristeza embutida nas paredes, nas soleiras, nas portas, mas eu percebo.

E este perceber é algo assim que profana a alma, pois dilacera, corrói espanta, compactuo com elas as tardes que já se foram, os dias alegres, os aniversários. Ah os aniversários, quanta vida, quanto sentir agora os vestígios estão ali tão visivelmente encalacrados em cada tábua em cada viga, em cada tijolo!

As pessoas trazem consigo a pressa aturdida dos dias instantâneos, dos minutos do infinito pulsar e contar das horas, pressa é o que leio em cada passo, em cada dobrar de esquina, porém percebo também a solidão atroz e tão companheira destes pobres mortais, como são sós em si mesmos e o mais absurdo é que não o percebem, ao contrário camuflam esta infelicidade em paradas defronte as vitrines os olhos brilham, admiram por fim entram e compram, compram, como consomem estes vermes!

Consomem até o delírio aturdido e confundem em si mesmos o consumir com o sentir, por vezes paro e perplexo anseio em ter uma espécie de varinha de condão daquelas dos contos de fadas, ora se a possuísse, andaria por aí tipo um Dom Quixote de La Mancha a lutar contra gigantes consumistas, frios e frívolos consumistas!

E assim como num passe de mágica ao tocar a varinha de condão nas cabecinhas, tiraria do transe, da nóia, do vácuo as mentes absortas no paradoxo capitalista, calculista, individualista, em que se atolararam

Sigo meu caminhar, agora estou diante de uma grande e imponente senhora solitária, ela me chama, assim discretamente, atendo seu suplício, paro e escuto o que tem a me dizer:

“Ei, ao que me parece tu possui uma candura plácida e terna, tu me ouves, tu me ouves”?

Com um movimento discreto que sim, respondo afinal todos iriam me tomar por louco se acaso percebessem que respondo a uma velha casa da década de 40, mas que me importa o que pensariam, aliás, nem ao menos pensariam, estão todos tão absortos consigo mesmos que nem perceberiam um louco a responder uma velha casa em ruínas!

Prossegue o diálogo com a velha senhora:

“Por fim alguém me escuta, após tanto tempo, ouça com atenção o que tenho a lhe contar, analise minha fachada, perceba minha história, ah filho quanta coisa gravada em minhas paredes, quantas vidas, quantas risadas, quantos risos perdidos...

Fico ali ouvindo, ouvindo, pego meu pequeno bloco de notas, escrevo, escrevo tudo o que a senhora me conta, mas calma, por Deus calma, sou ume somente dentre tantos que por aqui passam, que capaz foi de lhe atender, permita-me algumas pausas...

Assim passo ali mais da metade do dia, anotando, anotando, por fim ela se cansa, emudece e com seu silêncio a noite perambula pelos postes frios e úmidos, hora de seguir adiante, afinal alguém já ligou para o órgão do controle social, estou a perturbar a paz de alguém, mas que coisa, apenas estou aqui parado a escrever, nada falo, nem ao menos nenhum movimento suspeito, não importa, somos todos suspeitos até que se prove o contrário!

Dispeço-me da velha senhora com todo o respeito, ela, assente com um leve sorriso já cansado pelos anos amargurados das paredes pesadas e sem vida!

Sigo com a promessa de retornar, ela consente, mas em um último suspiro noturno diz bem baixinho: “Não tardes a voltar filho meu, não tardes, corres o risco de aqui chegar e deparar-se com as ruínas, ouvi dizer que estão prestes a me demolir, pensam em construir aqui um shopping, filho podes dizer-me o que vem a ser um shopping”?

Evito a resposta, além de demorar horas para lhe explicar o que vem a ser um shopping, não suportaria presenciar a cena dramática que viria a seguir, melhor deixar que a velha senhora repouse no mar da ignorância, afinal a pouparia do imenso pesar em saber que ali em seu lugar, no lugar de tanta história, tanta memória seria criado um daqueles elefantes brancos recheados de promoções, promoções, grifes, melhor esquecer deixar que a velha senhora mergulhe no acaso do esquecimento urbano!

Dispeço-me e saio assim como ator de palco e platéia vazia, agora caminho como bêbado, mas não consumi uma gota de álcool sequer, estou inebriado com a velha senhora, pobre senhora, sepultada já foi há muito, sinto uma imensa vontade de correr até ela, abraçá-la, acariciá-la, dar-lhe meu alento, chego à esquina de um cruzamento qualquer, ajoelho-me e choro, um choro incalculavelmente doído, aturdido, uma mescla de impotência fria, neutra, uma impotência vazia de não poder, completa de querer, mas neste mundo não sobra espaço para o querer, o querer ausentou-se, esta no vácuo, no espaço alienado, neste mundo quem ousa sentir demasiadamente demais é tido como incapaz, louco, profano, insano...

Assim depois de tanto sentir, tanto perceber e querer aqui estou internado para sempre trancafiado neste lugar incurável, chamado sanatório, e passo os dias a lamentar, como gostaria de a velha senhora visitar, mas ninguém acredita que uma velha casa alma possui, me tomam por demente, mas eu juro e atesto, sou réu confesso, eu ouvi a velha senhora, eu ouvi...".

Após terminar a leitura conversamos sobre os valores que hoje estão guiando a sociedade, abordei o consumismo, a falta de tempo e a ausência de muitos em relação ás coisas do passado.

Uma aluna então veo falr comigo, contou que os seus avós moram em uma casa muito antiga, o ano da construção é de 1945, e que ela ama aquela casa, que sente muitas vezes que as paredes parecem querer lhe dizer coisas, mas que nunca contou isso á ninguém, de certa forma ela se identificou com o personagem de minha história.

Aproveitei a deixa para incentivar a garota a começar a criar histórias sobre a velha casa, que até poderia escrever um livro "histórias da casa dos avós", ela sorriu e o sinal bateu!

Julia Lopes Ramos
Enviado por Julia Lopes Ramos em 11/10/2009
Reeditado em 11/10/2009
Código do texto: T1860756