FERIDAS DE GUERRA

De família humilde, veio gramando, praticando o alpinismo dos empregos de ocasião para ajudar a família. Estudou como pôde, mas, inteligente e esforçado, foi chegando. Formou-se em curso superior com boas notas, fez concurso muito cedo e acabou em grande empresa. Ambicioso, credor insaciável de seu passado de privações e sonhos adiados, fez carreira com mérito e no manotaço: deu cotovelada, chutou, atacou, mas, como em terra de cego quem tem um olho é rei, acabou galgando posições. Passou a ganhar bem, mas ainda pouco para quem se acreditava tão merecedor e capaz. Fez besteiras, arrumou inimigos, desprezou colegas. Foi combatido, sabotado, isolado, mas não arrefeceu: queria, precisava vencer, contra tudo e contra todos. Era de bom coração, simpático e prestativo, mas poucos se davam conta de suas virtudes, tal o volume de queixas. Pouco atento, tinha auto-estima indomável e acalentava sonhos infinitos. Caiu, tropeçou, levantou-se, caiu de novo, mas, como bom trabalhador, resistia na empresa, ainda que fosse objeto de muito desapreço. Fenômeno curioso de vida funcional, seu trabalho era correto, demandado, muitas vezes festejado por superiores. Tinha prestígio em alguns círculos graças a seus méritos. Mas nada o detinha, queria muito mais, talvez nem soubesse bem o quê. Fez novos inimigos e opositores, gratuitamente. Não ligava para as adjacências, talvez tomado pelos arroubos da soberba, talvez porque acreditasse que assim era a própria sina. Ansioso, apressado, incauto, num belo dia outonal, abandonou anos de vida na empresa como quem despe um traje velho. Vislumbrava um futuro mais auspicioso, ganharia dinheiro, felicidade, sucesso, porque, no meio de tantas nulidades cujo desenvolvimento acompanhava, era impossível que ele, mais preparado e disposto, não colhesse melhores trunfos. Assustou até os que não o apreciavam. E partiu para o desconhecido, com pouca munição e esperança de caçador, como, outrora, seus pais, que caçavam com as mãos e o desespero em campos de concentração.

O destino nos pertence?