Crônicas de Sala de Aula: Histórias Sobre o Racismo

Transformar o cotidiano em algo prazeroso nem sempre é uma tarefa fácil, a eterna tendência é o comodismo, afinal todas as tribulações a que estamos submetidos principalmente em final de mês acabam por ocultar verdadeiros sentimentos, encobrem um sorriso, um ato de gentileza.

Mas para aqueles que possuem a consciência em relação a tais impedimentos, todo dia é dia de procurar derrubar nem que seja a marretadas estes muros´erguidos diariamente ao nosso redor.

O pior do comodismo é o mental, deixar que tudo siga assim sem um sentido, um seguir apenas.

Obviamente não me considero isenta de tais arcadismos no entando exercito sempre a idéia de que não estou aqui simplesmente para levar uma vida medíocre, sem um sentido.

Sendo assim minha tarefa remete-se a recriar o cotidiano, aproveito para realizar meus experimentos durante minhas aulas.

O tema da última foi a questão racial, iniciei questionando se alguém já havia sido vítima de discrimação, como esperava algumas mãos se ergueram e os relatos iam desde a questão da cor até a do poder aquisitivo.

Contei então sobre uma passagem de minha vida, quando estava na primeira série, uma menina de seis anos apaixonadinha pelo coleguinha de classe chamado Péricles.

A menina era tímida de tudo, procurava esconder seus sentimentos, mas meninas são meninas e o segredo veio á tona.

Estava sentada em meu lugar tentando resolver as continhas de matemática, quando Péricles chegou, parou em minha frente dizendo que soubera que eu gostava dele.

Meu coração pulsava como nunca, fiquei olhando para ele calada, esperando algo de bom, foi quando veio algo que marcou minha percepção em relação a minha cor.

Aquelas palavras não saíam da minha cabeça infantil, "olha aqui, vieram me dizer que você gosta de mim, mas eu não gosto de você, você é neguinha".

Quando cheguei em casa minha prima estava lá, contei a ela o que havia acontecido, em sua infantilidade falou que se eu quisesse clarear minha pele era só tomar bastante leite.

Nossa nunca bebi tanto leite como nos dias que se seguiram, procurava a todo custo clarear, embranquecer minha pele, e quando ia tomar banho me demorava, na tentativa de alcançar meu objetivo, esfregava minha pele com força.

Mas nada de embranquecer.

Após contar minha saga pela "perfeição" relatei uma outra história, também de uma garota, seu nome era Judith e viveu os piores anos da segregação racial nos EUA.

Judith foi a primeira criança negra autorizada a estudar em uma escola exclusiva para brancos e seu primeiro dia de aula entrou para a história.

A mãe cuidadosamente arrumou o cabelo da garota, a ajudou a vestir o uniforme, preparou seu lanche, Judith estava radiante, seria sua estréia, finalmente iria estudar, primeira série.

Ao chegar na escola a garotinha foi recebida pela professora, seus olhinhos brilhavam tudo era novo, a escola grande, mas estava vazia, a única aluna era ela.

Passou a tarde aprendendo as primeiras letras, fez um desenho onde várias crianças brincavam de roda dando as mãos. que

Na hora do lanche, sentou no banquinho lá no pátio, abriu sua lancheira e cumpriu seu ritual sozinha.

Quando o sinal bateu, a professora ajudou Judith a arrumar suas coisas perguntando se a menina havia gostado.

Judith com um sorriso disse que sim, mas finalmente criou coragem e perguntou onde estavam as outras crianças.

A professora apenas explicou que logo elas estariam de volta e ao levar a pequena até o portão de saída pediu que não importava o que acontecesse quando aquele portão se abrisse, a menina devia seguir de cabeça erguida, sua mãe estaria lhe esperando louca para lhe dar um abraço.

O portão abriu-se, apenas um estreito corredor era o que Judith tinha para caminhar, dos dois lados uma multidão de pais e crianças brancas gritando palavras e expressões como "sua negra não queremos você aqui", Judith insistia em não compreender.

Correu até a mãe que carinhosamente a pegou no colo e juntas se foram.

Ao terminar esta história entrei nas teorias racias formuladas lá no século XIX por cientistas que procuravam legitimar a superioridade de um grupo humano sobre outro, aquela que dividia os seres humanos em "perfeitos" e "imperfeitos".

Expliquei que durante o processo de colonização iniciado pelos europeus estas teorias racias foram utilizadas e à elas adicionado outro ingrediente para sustentar ciêntificamente a escravidão, este ingrediente era a questão da cor.

Assim foi forjada a "raça", seres humanos foram divididos pela cor, e até hoje vemos pessoas que insistem nesta classificação.

Particularmente creio ser obsoleta e arcaica.

Ora se existe uma "raça", ao meu ver a única é a raça humana.

Somos todos da raça humana, mas nem todos são "humanos", nem ao certo compreender a dimensão contida nas entrelinhas da mesma, jamais compreenderão.

Ao final da aula falei um pouco sobre os perigos da discriminação, de um grupo achar-se superior ao outro, exemplo imperfeito "Hitler" e seus seguidores fanáticos que por um ideal de perfeição foram capazes de promover atrocidades infinitas.

Relatei como era a rotina em um campo de concentração, li a entrevista de uma judia sobrevivente de Auschwitz, então trouxe a questão para o tempo presente, perguntei se já ouviram falar dos skinheads, grupos de jovens que exaltam os ideiais nazistas, que perseguem grupos por eles considerados indignos de viver.

A mais ou menos quatro meses atrás aqui em Curitiba, houve uma festa em um chácara, ali jovens universitários comemoravam o aniversário de Adolf Hilter, eram neonazistas.

Aproveitavam a data para articular novos ataques a homoxessuais, negros, índios, esta festinha virou notícia porque durante a mesma um casal foi assassinado por disputa de poder.

A polícia encontrou nas vítimas características de eliminação peculiares a neonazistas, eles seguem um ritual para deixar clara a ideologia a qual pertencem.

Salientei que todos nós temos o dever de combater a discriminação e o preconceito, seja qual for.

O sinal bateu, a aula acabou, mas o assunto não.

Dias após fico sabendo que um pai foi até a escola para averiguar uma situação, sua filha estava sendo ameaçada na escola.

O diretor prontamente foi com o pai até a quadra de esportes onde a turma estava, a garota"vítima" jogava alegremente, porém quando viu o pai, começou a chorar dizendo que uma menina de sua classe estava ameaçando lhe bater.

A acusada foi chamada e disse na frente do pai e do diretor que a "vítima" vivia a provocando com dizeres tipo "sua negra nojenta" e que realmente a ameaçou, mas prometeu ao pai que não faria nada com a menina e que desejava apenas que ela parasse com as provocações.

Então o diretor convidou o pai para ir até a direção para registrar na ata o ocorrido, neste momento o homem começou a gritar, esbravejava se o diretor ia ficar do lado da "negra", que isso era um absurdo.

Proferiu palavras de baixo escalão e questionando como uma escola pode proteger uma "negra".

Ao saber do fato lamentei por este homem não haver saído dali algemado, será que ele não sabe a discriminação hoje dá cadeia?

De fato nossa sociedade ainda precisa rever muitas coisas em relação a velhas teorias enraizadas.

Estou vendo que precisarei abordar esta temática em muitas e muitas aulas ainda.....

E quanto aquela garota que desejava a todo custo se tornar branca, bebendo leite e tomando banhos longos, com o tempo ela aprendeu que não importa como você seja, sua cor, se possui ou não uma religião, se usa ou não uma tatuagem, importa é a essência de sua alma, importa viver respeitando todas as diferenças e sempre buscando evoluir como "ser humano", um dia quem sabe os ideias valorosos sejam assimilados e substituam a ignorância, quem sabe....

Já a outra personagem desta história, a menina Judith, cresceu enfrentando sempre os preconceitos, tornou-se professora e aposentou-se na mesma escola que um dia lhe abriu as portas.

Mas ainda existem outros três personagens nesta trama.

A "vítima" das ameaças, simplesmente reproduz o que seu pai lhe ensina como correto, que negros são indignos e desprezíveis, mas creio que para as chances de mudança existem, já o pai infelizmente é um caso perdido, enterrado em suas convicções hipócritas.

E para a garota negra, que se defende como pode, ou seja através da firmeza e da intimidação, para esta desejo sinceramente que siga de cabeça erguida, além de lutar contra uma sociedade excludente ainda vive uma dura realidade, o padrasto alcólotra, a mãe que com toda dignidade junta papel nas ruas, sempre em busca de um futuro digno para a filha.

Em uma de minhas aulas, após ler um conto de um escritor chamado Julio Damásio, larguei o livro em cima da mesa, foi quando esta jovem perguntou se podia ler, imediatamente eu lhe disse que sim.

Ela ficou a aula toda folheando aquele livro, leu todos os contos, ao final me entregou, fiquei muito feliz, pois o comportamento dela era sempre agressivo, provocativo, de enfretamento.

Perguntei o que gostava de ler, ela disse que adora Paulo Coelho, nesta mesma semana contei a história a um amigo escritor Geraldo Magela que, me deu um livro do Paulo, dizendo que eu presenteasse minha aluna.

Escrevi uma dedicatória e entreguei á ela.

Só sei que depois disto, durante minhas aulas ela mudou, passou a ser menos agressiva e aos poucos estamos nos entendendo.

É para você que dedico esta crônica garota, que suas leituras e vivências a ajudem cada vez mais a romper preconceitos.

Julia Lopes Ramos
Enviado por Julia Lopes Ramos em 03/10/2009
Código do texto: T1846257
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