Crônicas de sala de aula
Hoje amanheceu um dia daqueles tortuosamente chuvosos, aliás, despencou água a noite toda.
Como de costume o despertador cumpriu sua missão e não é que na hora certa...
Seis horas da manhã, levantei, mas não antes de dar aquela enrolada básica, viro pro outro lado e nossa, achei a posição mais aconchegante, aquela que busquei em vão madrugada á fora.
Sempre me questiono, qual motivo será este que nos leva a ter o sono mais gostoso, justamente na hora de acabar com o mesmo...
Bem, segui para o banho, mais água, lá fora e agora no chuveiro.
Passei um café, saboreei esta bebida fantástica e sai.
Enquanto caminhava cantarolava uma canção da Legião Urbana, uma que traduz perfeitamente a faceta mais medíocre do ser humano, a de não vislumbrar o mais simples como mais importante, a música “Índios”.
Finalmente cheguei à escola onde leciono, minha primeira aula era com uma das oitavas séries.
Entrei, dei um bom dia aos meus efervescentes adolescentes, fiz a chamada e iniciei.
Acabamos de sair do período entre guerras, estamos agora em plena segunda guerra mundial!
Procuro criar aulas dinâmicas e começar sempre com algo que desperte a atenção dos jovens pupilos.
Então pedi que fechassem os olhos e imaginassem esta cena:
_ Imaginem que hoje ao chegar da aula, encontrem suas casas vazias, seus parentes ausentes, tudo revirado.
_Agora imaginem que vocês ao saírem para procurar sua família, fossem pegos á força e colocados em um caminhão e levados para uma estação de embarque, que fossem jogados dentro de um trem de carga juntamente com pessoas que assim como vocês não fazem idéia do que será de suas vidas.
_ Então depois de horas ou dias viajando, sem água, sem comida, quase sem ar, finalmente chegassem ao seu destino final, um campo de concentração, onde no portão de entrada estivesse escrita a seguinte frase “Somente o trabalho liberta”.
Ali naquele lugar vocês receberiam um uniforme listrado, são marcados com ferro em brasa, tatuados com um número, suas cabeças raspadas.
Ali a vida deixa de ser vida e passa a ser sobrevivência, aqueles mais aptos são forçados a trabalhar exaustivamente, os que não possuem resistência...
Digamos que um dia alguém entre gritando dizendo que vão tomar banho, todos são levados, tiram as roupas e amontoam-se em um mesmo espaço, esperando a água, quando a mesma começa a cair, vocês começam a sufocar desesperados tentam em vão sair daquele banho maldito, mas não conseguem, caem todos mortos.
Meus caros amigos este era um dos métodos utilizados pelos nazistas para eliminarem os grupos considerados impuros, indignos, durante a segunda guerra, principalmente os judeus.
Neste momento cito um nome, Nicolas Wintom, pergunto se alguém ali já ouviu falar deste homem, as cabeças respondem negativamente.
Pois bem, nesta época, Wintom era um jovem e visitava a Tchecoslováquia, percebeu o perigo que centenas de crianças corriam de serem enviadas para os campos de concentração nazistas.
Este jovem era inglês e ao retornar ao seu país ficou pensando em como poderia fazer algo para evitar o destino trágico de crianças judias.
Foi aí que pegou sua velha máquina de escrever e começou a escrever cartas, muitas cartas para famílias da Inglaterra, nestas cartas informava sobre o perigo nazista e pedia que se pudessem receber uma destas crianças, estariam salvando uma vida.
Desta forma Nicolas Wintom organizou o The Kinder Transport, o transporte de crianças judias na segunda guerra.
Graças a iniciativa deste homem 669 crianças tiveram suas vidas salvas, somente o último trem com 300 crianças não pode sair a tempo, estas se juntaram as 15 mil crianças tchecas assassinadas em campos de concentração.
A esta altura da aula, os olhos arregalados mostravam que meus alunos estavam entrando no espírito da segunda guerra.
Alguém me perguntou o que aconteceu com Nicolas Wintom.
Expliquei que ele nunca contou a ninguém o que fez, e muitos anos depois, sua esposa encontrou no sótão um velho baú com fotos de crianças, cartas, bilhetes de passagens, quando foi questioná-lo, ele contou toda a história.
Seu feito veio á tona, recebeu homenagens, e foi convidado para participar de um programa de televisão, estava sentado na primeira fila da platéia e após ser entrevistado e contar tudo que passou a apresentadora lhe disse que a mulher que estava sentada ao seu lado era uma das crianças que ele salvou, ele emocionou-se, os dois se abraçaram.
Mas logo em seguida a apresentadora perguntou quem da platéia teve sua vida salva por Nicolas Wintom fique em pé, simplesmente a platéia toda fico em pé, e todos agradeceram!
Terminei a aula dizendo aos meus alunos que a importância em estudarmos a história reside aí, no fato de que Adolf Hitler foi eleito pelo povo, e que temos a obrigação de estarmos sempre atentos, que o poder é capaz de gerar monstruosidades incalculáveis.
Salientei que o que estudamos, lemos, as fotos estão ali, e apesar de que para eles parece algo distante quase irreal, foi real sim, aconteceu e que hoje ocorrem inúmeras aberrações, falei sobre os grupos neonazistas que se proliferam exaltando os ideais nazistas e idolatrando Hitler, perseguindo homossexuais, negros, nordestinos...
O preconceito é corrosivo, degenerativo e devemos respeitar as escolhas de cada um.
Comentei sobre um caso recente aqui em nossa cidade Curitiba, onde um grupo de universitários se reuniu em uma chácara para festejar o aniversário de Hitler e aproveitar para planejar novos ataques.
O caso só veio a tona porque um casal que participava da festa teve uma desavença por motivos de liderança e foram assassinados, a polícia após investigações descobriu até pela forma como foram mortos que faziam parte deste grupo neonazista com ramificações no estado de São Paulo.
Pedi que refletissem na gravidade do caso, alunos universitários com acesso a informação e reproduzindo comportamentos lá do passado mas bem presentes em nossos dias!
Fim de aula!
Quando cheguei de manhã chovia torrêncialmente, na saída, o céu antes absurdamente sombrio cedeu lugar ao sol, retonei cantando outra música da Legião Urbana "mas é claro que o sol vai voltar amanhã, mais uma vez eu sei"...
Este texto faz parte da Antologia de Crônicas de Sala de Aula, com lançamento previsto para o final do ano.
Devidamente registrado na Biblioteca Nacional.