O quintal de tia Nena
A infância é bem mais do que a fase mais leve e saborosa da existência humana. É quando o indivíduo registra as principais impressões e sensações que o nortearão ao longo de toda a sua vida.
Nesse contexto, uma família bem estruturada, forjada no afeto e em princípios morais sólidos, é uma das bases do tripé de sustentação da criança. As outras duas são a educação formal obtida na escola e a espiritualidade despertada pela educação religiosa.
Às vésperas de completar 40 anos, ao olhar para trás consigo enxergar nitidamente a minha infância sustentada por esse tripé. Sinto-me privilegiado por ter sido criança numa cidade isolada do mundo, cercada de serras e rios, com coreto e fogão de lenha e sem rodovia asfaltada, telefone e luz elétrica em tempo integral.
Nem rico nem pobre, nunca me faltou o necessário que me fizesse vivenciar as privações materiais tão comuns a milhões de crianças mundo afora. Também não tive nada em excesso que me tornasse um desses pernósticos e arrogantes que só enxergam a realidade pelo prisma financeiro.
Tive, para minha sorte, uma infância rica daquelas experiências que transformam. Além da minha casa, as ruas, praças e outras tantas residências de Boa Nova (na Bahia) eram também palcos para o exercício fecundo da minha imaginação infantil. Desta época um lugar ocupou especialmente a minha memória no último fim de semana: o quintal de tia Nena. Como acontece com praticamente todos os baianos, que têm seus nomes reduzidos para apelidos de uma ou duas sílabas, minha tia-avó Jardelina Duarte Coqueiro viveu seus 99 anos (etapa concluída no sábado passado) apenas como Nena.
Ela, que faria um século de vida no dia 2 de janeiro de 2010, partiu com a mesma lucidez e serenidade que me parecia ter lá pelos idos de 1977, 1978, quando eu, seu neto e outros tantos meninos “invadíamos” o seu quintal para brincar. Ali era um universo à parte, repleto de bananeiras, goiabeiras, jaqueiras, laranjeiras e outras tantas árvores frutíferas e ornamentais.
Naquele recanto dos sonhos fazíamos verdadeiras peças teatrais sem platéia. Algumas vezes éramos índios com penas de galinha presas à cabeça por um barbante e com arcos e flechas improvisados com galhos secos e arames; noutras nos vestíamos de soldados romanos, com lençóis amarrados ao pescoço e com lanças feitas a partir de cabos de vassoura (inspirados nos episódios do Sítio do Pica-Pau Amarelo); ou ainda encarnávamos os papéis de cowboys do Velho Oeste. Em qualquer situação os vilões eram sempre as pobres bananeiras, que recebiam flechadas, socos, pontapés e estocadas de lanças até tombarem ao chão, para nosso desespero. Só aí ouvíamos alguma bronca de tia Nena (nunca em voz alterada, diga-se de passagem!), que nos proibia de aparecer no seu quintal por uma semana. Cumprida a “pena”, retornávamos para outras aventuras.
Sei que esta lembrança tem elementos parecidos às de outras tantas crianças, ainda que cada um as processe do seu próprio modo. Minha mãe, que tem 74 anos, conta que também se lembra com saudade de sua própria infância no quintal de tia Nena (que era a irmã mais nova da minha avó materna). Para ela, ali também era uma espécie de refúgio para as brincadeiras de menina.
Para uma pessoa tão querida quanto foi tia Nena – que teve o privilégio de conhecer o neto de seu neto e de assistir ao desenrolar de quase todo o século 20 – a virada desta página de sua existência certamente é o prenúncio de andanças ainda mais promissoras para seu espírito.