Recados de Belchior

Após muitas chamadas e suspenses em torno do “sumiço de um cantor” na edição do Fantástico do último domingo, confesso que fiquei realmente estarrecido ao saber que se tratava de Belchior. Vivemos num cotidiano tão corrido e tão marcado por overdoses de afazeres e obrigações que, muitas vezes, não nos damos conta que alguém anda sumido.

Se essa constatação vale para familiares, amigos e conhecidos, o que dizer de artistas? Mesmo assim, fiquei mais surpreso (e chocado!) com a notícia do desaparecimento de Belchior do que com a súbita morte de Michael Jackson. A conturbada trajetória de vida do “rei do pop” já era em si um forte indicativo de como seria o seu fim. Quanto ao cantor e compositor cearense, que chega aos 62 anos com quase 45 anos de carreira e mais de 60 discos entre compactos, LPs e CDs, é de espantar ouvir algo assim, principalmente porque a sua vida sempre foi marcada pela discrição.

Torço para que seu desaparecimento seja apenas uma espécie de auto-exílio (ou, como já ventilam em boatos, uma “jogada de marketing” qualquer!), em vez do desdobramento de alguma tragédia. Em sites por onde perambulei em busca de informações cheguei a ler o depoimento de um primo do cantor, que diz textualmente: "Belchior encerrou a carreira. Está bem de saúde, de finanças, mas decidiu não gravar mais ou fazer shows. Há mais de um ano que nem nós, da família, temos contato com ele. Só uma irmã, Ângela, que de vez em quando recebe telefonemas. Ninguém sabe nem onde mora, só que parou com tudo. Não sei se foi problema de cabeça, se cansou, sei que ninguém consegue mais contato com ele".

Felizmente, nas buscas também encontrei uma ótima notícia envolvendo o compositor nascido em Sobral – o site “Sempre Belchior” (www.semprebelchior.com), feito por um fã pernambucano. Lá, enquanto escrevia este texto, pude ouvir algumas de suas músicas que viraram hits e embalaram (ainda embalam!) a vida de milhões de pessoas Brasil afora.

Fantasiando o sumiço de Belchior como apenas uma despedida premeditada de alguém famoso em busca do anonimato (talvez agora ele tenha voltado a ser apenas Antônio Carlos, como certamente o foi na infância!), imaginei trechos de suas canções que pudessem conter “pistas” de que isto poderia acontecer um dia. Em “Pequeno mapa do tempo” (uma das minhas favoritas!), ele admite: “eu tenho medo de abrir a porta que dá pro sertão da minha solidão. Apertar o botão, cidade morta, placa torta indicando a contramão”. Completando este contexto, em “A palo seco” Belchior adverte: “se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava. De olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava. (...) Ando mesmo descontente, desesperadamente, eu grito em português”.

O “rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior” já avisava em “Todo sujo de batom”: “eu estou muito cansado do peso da minha cabeça; desses dez anos passados, presentes, vividos entre o sonho e o som. Eu estou muito cansado de não poder falar palavra; sobre essas coisas sem jeito que eu trago no peito e que eu acho tão bom”.

Na verdade, quanto a essa temática ele foi bem mais enfático em “Brincando com a vida”: “vida, eu não aceito, não, a tua paz! Porque meu coração é delinquente juvenil, suicida, sensível demais. Vida, minha adolescente companheira, a vertigem, o abismo, me atrai: é esta a minha brincadeira. Eu estou sempre em perigo: o dia D, a hora H, a corda bamba, o bang, o clic do gatilho...Vida, agora eu te conheço”.

Estranha ou não, uma possível decisão de desaparecer é coerente com sua visão de mundo e de si mesmo. Em “Comentários a respeito de John” (numa referência ao beatle John Lennon), Belchior dispara: “saia do meu caminho eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida. Não preciso que me digam de que lado nasce o sol, porque bate lá meu coração”.

Caso volte e retome a sua brilhante carreira, também há recados em suas canções que sustentam algo assim: “você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer” (Velha roupa colorida) ou “quero gozar no seu céu, pode ser no seu inferno, viver a divina comédia humana, onde nada é eterno. (...) Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso, eu vos direi, no entanto: enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não eu canto” (Divina comédia humana). Eternas mesmo só as canções...

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 28/08/2009
Reeditado em 28/08/2009
Código do texto: T1779513