DEVOLUÇÃO DA IMAGEM PERDIDA

Osvaldo André de Mello*

Desde que me entendo por gente, na paisagem humana que me cerca, mereço uma presença-presente, a Ju, ou melhor, para os leitores do AGORA, a colunista Maria José Faria Botelho. Um presente, porque a Ju me devolve a mim mesmo. Integro a sua memória intacta e vivo naquele coração enorme, acolhedor, generoso. Ela também vive em mim e lhe devolvo, como um espelho, a imagem perdida.

Nas lembranças mais remotas da minha infância e pré-adolescência, as visitas dominicais da Ju se inscrevem com muita clareza. Afiguravam-se-me um evento surpreendente. Morava com o marido, o Antônio Pires Botelho, no Porto Velho, todavia, como mantinham vínculos familiares e sociais no centro, freqüentavam a missa de domingo, na Catedral. Após a missa, o destino era a nossa casa, na Rua Oeste de Minas. Eles chegavam de lambreta, a primeira que vi. E a Ju, muito esbelta e elegante, descia da garupa, em postura ereta de manequim, vestida de calça comprida. Foi a primeira mulher a me aparecer de calça comprida e, eventualmente, de lenço à cabeça (por causa do vento ); e, invariavelmente, com seus enormes óculos escuros. O cabelo curtinho. Eram imagens da modernidade. Além de tudo, ela conversava sobre as suas “matérias”, publicadas no jornal “A Semana”. Foi a primeira escritora que conheci.

Depois, mudaram para perto de nós, compraram a casa nº 2161, na Rua Oeste, com manacá cheiroso e “brasileirinho”, no pequeno jardim da entrada.

Na 4ª série de ginásio, eu estudava no Colégio Estadual, o Prof. Lara marcou um trabalho, em substituição à prova final. Escrever uma história da literatura brasileira. Pesquisar, na Biblioteca do SESI, a única, naquele momento, era criar uma colcha de retalhos. Tive, entretanto, uma ampla visão da nossa literatura. Lancei-me ao trabalho. Os manuscritos eram datilografados pelo Antônio Lúcio, da Maria de Assis, e pela Rachel Delareti, graciosamente. A Ju fez o prefácio, a primeira referência crítica que mereci. A Zulmirinha ( logo depois, S.ra Geraldo Alonso Dias ) deu-me um curso de encadernação. O meu trabalho foi ricamente encadernado, com capa de papel camurça. Os próprios alunos e, depois, o mestre avaliavam a “obra”. A Déa Moura me conferiu a nota máxima, confirmada pelo Professor. Também apresentei uma novidade, uma história breve da literatura divinopolitana, em anexo. Rosa de Freitas mereceu retrato de Heraldo Alvim. O mestre, gramático e escritor renomado, ganhou biografia. A Ju, de olho nas redações, em tudo que escrevia, amou o trabalho.

Aí, fizemos a rifa de um relógio para ajudar nas despesas da formatura. A Alice não pagou o bilhete e o seu número foi premiado. O relógio seria entregue? Brigas, bate-bocas e... Escrevo a crônica: “O Caso do Relógio”. A Ju não resistiu. Pegou-me pelas mãos e me pôs na redação d’ “A Semana”, diante do diretor, Frei Domingos, que leu o texto, gostou, publicou e não mais abriu mão da minha colaboração. Ah! E apreciara o trabalho escolar, levado pela prefaciadora.

Eu não completara ainda quinze anos. E me achava como jornalista! A Ju incentivando. O Frei Domingos, pondo fogo, encomendou-me a cobertura da Semana Santa. Uma página! Ao ser ordenado o Padre Ordones, lá fui entrevistá-lo. Nascia um modesto escrivinhador.

E, no jornal, salvo algum intervalo, continuo, até hoje, dialogando com a ilustre cronista, Maria José Faria Botelho, minha madrinha.

*Osvaldo André de Mello nasceu em Divinópolis, estudou Artes Cênicas no Teatro Universitário em Belo Horizonte e voltou para Divinópolis, onde se formou em Letras. Sua primeira publicação foi aos dezenove anos, com A Palavra Inicial (1969), e o poeta publicou ainda Revelação do Acontecimento, Cantos para Flauta e Pássaro, Meditação da Carne, e A Poesia Mineira no Século XX, entre outros. No teatro, dirigiu peças de grandes autores, como T. S. Eliot, Nelson Rodrigues e Emily Dickinson. É responsável pela montagem e direção do espetáculo APARECIDA NOGUEIRA IN CONCERT e ENSINA-SE A VIVER.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 21/08/2009
Código do texto: T1766390
Classificação de conteúdo: seguro