OS PONTOS DE EVOCAÇÃO

Osvaldo André de Mello*

As madeleines de Proust são pontos de evocação. No final do livro “Orlando”, de Virginia Woolf, a personagem sente-se sufocada pelas evocações, o invisível que povoa a realidade. Uma coisa insignificante descortina grandes eventos da memória. E depois que se viveu muito, os pontos de evocação, os mais inusitados, levam-nos, com muita freqüência, a apertar os cintos, desejando-nos boa viagem pelo que ficou lembrado, na neblina do esquecimento.

A nossa Rua Oeste de Minas, outro dia, recebeu a ilustre visita do ex-político divinopolitano, Adjames Andrade, muito bem acompanhado, em plena idade da sabedoria. Ele próprio parava diante de uma casa, parou diante da minha, afastava-se um pouco e lembrava e falava. Eu o cumprimentei, este inusitado ponto de evocação, e das abas do seu chapéu voei para a década de 80, à sala do presidente da Câmara Municipal de Divinópolis: encontro-me sentado, diante dele, do S.r Adjames Andrade, ao lado de Maria Cândida Guimarães Aguiar.

A questão era preservar o Sobrado do Largo da Matriz. Éramos um grupo enorme que iluminava toda a cidade com esta empolgante idéia nova: preservar o passado, as edificações que contam a história da cidade. Então, para uma determinada finalidade da luta, precisou-se da Lei Orgânica do Município e ninguém neste mundo de Deus possuía um exemplar. Para isto, estávamos, dissimuladamente, ali. A Câmara, soubéramos, dispunha de um exemplar. Sentados, bem ali, conversando pelos cotovelos, diante do presidente da câmara, atônito com tanta conversa fiada na cabeça, desabrigado do seu chapéu, sem entender a que fôramos a ele, eu e Maria Cândida, a mesma da coluna “Rotativa”.

De repente, Maria Cândida leva um susto, quase pula da cadeira, e dá uma fala, como se diz no teatro, “à parte” ( o “à parte” sou eu ): “Olha a Lei Orgânica atrás dele, na estante!” E continuou: “Eu vou distraí-lo e você passa a mão nela.”

E o distraiu mesmo, não é à toa que já fez e adora teatro. Falou, falou, levantou-se, abanou-se, sentiu calor e sede, pediu água, sem parar de falar um segundo sequer, creio que nem para beber água, afastaram-se... A frente livre, agarrei a Lei Orgânica e a sufoquei dentro da calça.

Instantaneamente, a cena morreu, saímos sob o olhar incrédulo do aliviado presidente.

A Câmara Municipal de Divinópolis, certamente, hoje, ostenta uma coleção de leis orgânicas, na sua biblioteca, mas aquele exemplar nela não figura, jamais foi devolvido. E acabou prescrita a referida transgressão, um furtozinho de pequena monta. Perdoados, o mandante e o executor, o Dom Quixote e o Sancho Pança. Afinal, os fins justificam os meios.

Publ. jornal AGORA p. 2 02/07/2009

*Osvaldo André de Mello nasceu em Divinópolis, estudou Artes Cênicas no Teatro Universitário em Belo Horizonte e voltou para Divinópolis, onde se formou em Letras. Sua primeira publicação foi aos dezenove anos, com A Palavra Inicial (1969), e o poeta publicou ainda Revelação do Acontecimento, Cantos para Flauta e Pássaro, Meditação da Carne, e A Poesia Mineira no Século XX, entre outros. No teatro, dirigiu peças de grandes autores, como T. S. Eliot, Nelson Rodrigues e Emily Dickinson. É responsável pela montagem e direção dos espetáculos APARECIDA NOGUEIRA IN CONCERT e ENSINA-SE A VIVER.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 20/08/2009
Reeditado em 20/08/2009
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