A “IDEOLOGIA” DE CAZUZA

(08.01.2009)

“A sua piscina está cheia de ratos; suas idéias não correspondem aos fatos”

(Cazuza)

1 Saramago reagiu; e reagiu bem: “Problema do meu revisor”. Esta nova forma unida ortográfica é sem objetivo. Mais regras para nos perdermos – até ele fica cego nessa cegueira ideológica. Procura-se sentido para tudo e, quando não se encontra, inventa-se “uma roda” para corrermos atrás. Ilusão de que há um sentido especial para a vida, para tudo. Em nome da qual justificamos nossas atrocidades, deixando de encarar a realidade: "Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor." (Saramago, de novo).

2 “Eu traço tantos planos. Brilhantes, antes. De te ganhar num salto. Mortal, de iniciante.” Saltos, mortais – e o próprio adjetivo já perdeu sua força – para desvendarmos o sentido da existência. Nisto, na procura do equilíbrio ideológico, assassinamos a tranquilidade. Não há equilíbrio neste salto, como nunca o haverá na Faixa de Gaza. Matamos em nome de Deus, que diz: “Não matarás”. Aponte-me uma guerra e eu lhe aponto um idealismo que a causou. Aponte-me um idealismo com poder, e eu aponto-lhe preconceitos e genocídios históricos.

3 Nada mudará com a demonstração dos fatos históricos. Não. Porém, gosto da indiferença de Nelson Rodrigues: “O que é a vida se não a soma de protestos inúteis?”: o sonho do equilíbrio move a roda do desequilíbrio. Promove “grandes” discursos. A turba, seduzida pela imperfeição, devora temas e adesivos de Che Guevara. Como o cachorro que corre atrás da roda – e, quando ela para, não sabe o que fazer –, o objetivo da ideologia é que nunca seja consagrada, para ser perpetuada. O resto é História. E todos sabem – ou deveriam saber, antes de levantar qualquer bandeira – as consequências (tive que corrigir meu corretor que não sabe o novo português) históricas da euforia ideológica.

4 Imagine o valor de um segredo revelado. Pois bem, deixa de ser segredo. Sua essência é a própria não revelação. Um segredo, a partir de dois, deixa de sê-lo. Não existe segredo compartilhado. E é por esta causa que a ideologia vive da procura; a estrada sem fim. Com cachorros ignorantes, latindo atrás.

5 Exatamente onde morre a ideologia: na ilusão da incoerência de algo que não existe. Pleonasmo? Exato! Fato real é a oscilação instável do subir pra cima e descer pra baixo do que nunca sai do lugar: “O meu partido é um coração partido”

6 Ironicamente, sua contrapartida está na frustração da ilusão fatal: reconhecer que é formada por seres, mais do que simplesmente passíveis, propensos a erros hediondos; e a todas as versões de drogas (químicas, físicas, políticas, religiosas, financeiras) que tanto hipocritamente condenamos. “Meus heróis morreram de overdose. Meus inimigos estão no poder. Ideologia, eu quero uma pra viver.”

7 Ora, o termo “heróis” é colocado em contraste com a palavra “overdose”, propositadamente. Heróis não se drogam. Decepção! Contudo, sua frase não para por ai: os heróis de Cazuza realmente morreram drogados: Janis Joplin, Jim Morrison, Elis Regina etc. foram embora e o deixaram sozinho. Por fim, o próprio Cazuza morre de seus excessos e desgostoso de que “seu prazer agora é risco de vida”. Seus inimigos, os moralistas promotores de guerras, genocídios e discrepâncias sociais, estão no poder, mesmo depois de toda a luta por Paz e Amor “daquele garoto que ia mudar o mundo”, dos anos 60/70.

8 Mas, a sentença vai além. Ao cantá-la, também lembramos de nossos ídolos, que falharam em seus excessos – fosse por drogas, corrupção ou mesmo falso moralismo. A ideologia desmascara-se. Cazuza e seus heróis ficam órfãos de objetivos reais. Isto incomoda. Incomoda saber que “a solução do enigma é que não há enigma” (Comte-Sponville). Porém, o que fazer sem enigma? Ser feliz? Por um triz? Deixar de exigir um mundo melhor para nossos filhos e educarmos filhos melhores para o nosso mundo? Incomoda descobrir que não há saída, pois nunca houve entrada. A questão é humana e não de ideal. O problema é a humanidade. E dela, seja qual for o idealismo, jamais poderemos sair.

9 Como jamais podemos sair de um engarrafamento. Exceto, se fizermos “Um Dia de Fúria”. Por falta de opção, perde-se a razão: vi aquela senhora buzinar e gritar e xingar. Em seu carro, um adesivo: CHEGA de Violência! Falsas máximas ideológicas à parte, não preciso de uma para viver. Ou, no melhor de Nelson Rodrigues, “Os regimes mais canalhas nascem em nome da liberdade”.

10 Liberdade em nome de Deus. No entanto, tributos e morte, também em Seu nome. O bem? Amar ao outro como a si mesmo? Que se dane! O que importa é o que o “líder” religioso (tão ignorante e falível quanto qualquer ser humano) pede no altar. E é neste ponto que volto ao Cazuza e sua ironia: todos se vêem aflitos, órfãos por suas bengalas. Seja do dinheiro, do consumo, da política ou da religião. Se auto-rotular, dizer-se fazendo parte de algo. Porém, nem seguem, nem sabem o significado do que dizem seguir. “Como varizes que vão aumentando; como insetos em volta da lâmpada”

11 Saltemos de volta ao “mortal”, palavra fatal. Porém, palavras ganham e perdem sua força, conforme o seu uso. Tão acostumados ao termo “salto mortal”, nem mesmo lembramos a origem de seu risco; ou melhor, o risco de sua origem. Habituados à repetição, nos jogamos e as jogamos, sem conhecê-las. Sem, nem mesmo, observarmos com cuidado o que sai de nossas bocas. Tão preocupados que somos em não nos intoxicarmos com o que comemos, esquecemos as abobrinhas que nos fazem vomitar. E as repetimos que nem papagaios de pirata; dando à luz as ideologias.

12 Fecho com Bruna, minha ex-aluna de desenho e modelagem em argila. Naquela época, com cinco anos, já tinha uma grande capacidade para contar histórias. Criava seus próprios contos, sempre começando com o clássico “Era uma vez”. E, ainda sem saber dos flagelos que todo e qualquer idealismo trouxe à História, terminava com o sonhado:

“E todos viveram felizes para sempre”.