A “REPETIÇÃO” DE LIMA BARRETO

01.10.2008

“O Brasil não tem povo. Tem público”

(Lima Barreto)

1 Ao ouvir “Que País é Este”, Cazuza se inspirou. Justificou-se a Renato Russo, e criou “Brasil”. A essa licença poética deu o nome de “inveja construtiva”. Cazuza inspirou-se diretamente, conscientemente. No entanto, muitas vezes não é assim. Milan Kundera diz em seu “A Imortalidade” que “os gestos não são nossos; nós pertencemos a eles”. Entregamo-nos a uma onda de comunicação que não fazemos – nem queremos, nem damos importância – a menor idéia de onde vem, começou ou o seu porquê.

2 Repetimos o padrão tornando-o uma convenção, para que possamos nos entender melhor. A beira da estrada, outros padrões surgem. E nos apegamos a eles. Mudam de região para região; de cidade para cidade; de bairro para bairro – e de idioma para idioma. Tornam-se gírias, expressões idiomáticas ou obsoletas. Repetimo-las, fazendo parte de uma cadeia de linguagem. Intuitivamente, com o objetivo de não ficarmos de fora – ou, “por fora”. E eis que surge uma nova onda. “Tá ligado”?

3 Há padrões nocivos. Como o das praças de alimentação dos Shoppings. Seguimos, cegamente, tal gesto obsceno: levar as bandejas, gratuitamente, para as lixeiras. Na verdade, a administração dos shoppings – que ganham muito bem, obrigado – deve contratar funcionários para fazer este trabalho que lhes roubamos, repito, gratuitamente.

4 A repetição, como qualquer ferramenta, pode ser usada apropriadamente ou inapropriadamente. Para construir ou destruir (como fez Goebbels em sua Propaganda Nazista). E repetir sem questionar é como o gado que vai para o matadouro – cedo ou tarde.

5 Assim, tiramos empregos por medo de sermos deseducados. Alguém leva os pratos sujos para a cozinha, num restaurante? Claro que não. No Shopping todo mundo o faz porque todo mundo o faz; repetindo sem pensar. A cegueira mantenedora da injustiça social. Agressivo? Eu? Devo ser. Amigo mesmo é o Mc Donalds, que é ama tudo isso.

6 Em outras palavras: temos medo de olhar a realidade. Tal medo no olhar, de observar ou analisar, faz-nos, além de cegos, egoístas – ninguém vai à lixeira por ser educado; vai-se para não parecer deseducado perante os outros. Este é o modelo que se repete; e o dinheiro no caixa de quem não precisa contratar. Alienado, o povo na platéia – o público que acaba sofrendo as conseqüências de sua letargia. Cedo ou tarde.

7 E eis que surge uma nova onda. Uma epidemia. Como em “Ensaio Sobre a Cegueira” (ainda não li o livro; vi o filme – livros e filmes: expressões diferentes, como ouvir “La Vie en Rose” por Piaf, Armstrong ou Grace Jones), uma peste financeira infestou a humanidade, nos últimos anos. Estimulado pelo excesso de crédito americano e europeu, o mundo disparou economicamente. Os chineses se empolgaram e até esqueceram o seu “socialismo” (sinceramente, a China não é socialista nem aqui nem na China). Surgiu a bolha. E o que era barato agora está a sair caro – o barato sai caro, repetia minha mãe.

8 E voltemos ao mundo que cresce – ou que já não cresce tão mais; ou jamais. Cegamente, a epidemia se espalhou. E nossos líderes, cegos como os personagens de Saramago, dizem que o Brasil vai bem e que não podemos ser vítimas dos erros dos americanos. Ora, já somos vítimas desde o momento em que acreditamos que o crescimento era nosso. A burrice se repete. Logo sofreremos as conseqüências de um mundo abatido pela visão repentina da cegueira. Pela noção de que, de fato, não enxergamos um palmo à nossa frente.

9 Lembrei-me do fiscal da CET (o qual chamei de porco – pobres porcos, que ofensa lhes impingi – na semana passada)! Cena do filme: cegos, em quarentena, seguiam uns os outros. Um deles se perde do grupo e não consegue voltar. Um guarda usa o seu poder contra ele; apenas pelo simples prazer ignorante de exercê-lo (como o porco da CET). Como há ignorantes no poder! Epidemia. Seja na ditadura, seja na democracia, a estupidez se repete. E cá estamos nós encrencados com o precipício financeiro que nos espera. “Tá ligado”?

10 Hoje não me senti no humor anterior e terminei por repetir meu padrão mais cáustico; menos debochado, menos irônico. Repetir é ferramenta importante. Estudei, em literatura, que a palavra repetida ganha força no decorrer de um texto. Por isto, aprendemos a evitar a repetição, nas redações. Para podermos fazer melhor uso dela, quando necessário – aí sim, como figura de retórica.

11 É aí que chegamos a Lima Barreto: “A repetição é a melhor figura de retórica” (frase que costumo repetir). E repito. Faço-o sem pudor. Repetir pode ser diferente de imitar. Espelhando-se. Inspirando-se. Qualquer um que se dedica com seriedade a uma atividade sabe disso. É seguir um caminho próprio, sem deixar de lado os bons exemplos. A “inveja construtiva”, de Cazuza.

12 Ao contrário da mídia – como Renato (não o Russo) comentou comigo –, que não quer repetir o que ninguém quer ouvir (a verdade). Seguem-na (e seguir não seria uma forma de repetição?) os políticos. E eis que sai na TV dizeres de que o país está blindado em relação à crise mundial – logo o Brasil! Obviamente, com o intuito de manter cega uma população sem instrução (cegueira dupla) e manipulá-la ao bem de suas eleições. A famosa “propaganda” de Goebbels – “uma mentira repetida muitas vezes torna-se verdade” – e de tantos outros que lha seguiram.

13 É a cegueira (dos outros) como melhor figura de retórica (para a mídia e sua propaganda de poder).

Isto é simplesmente História. Não é preciso repetir