A “AMIZADE” DE CÍCERO

04.12.2008

“Quem se aflige pelos próprios males não ama o amigo, mas a si mesmo.”

(Marco Túlio Cícero)

1 Surge de onde menos se espera. Vai-se quando menos se imagina. Não posso reclamar. Se existe uma riqueza em minha vida são meus amigos. De todos os lugares, de todas as formas e cores, em todos os estilos, em todos os momentos. Por isto, por demonstrações passadas, muito presentes, digo: tenho muitos amigos. Todavia, nem tudo são flores. Há momentos que a amizade se escoa quando dela mais se depende.

2 “Fala aí, Amizade!” Ela, que vem de longe – do latim vulgar –, vai mais longe. Filha de amor, reflete relações. Cícero dizia que está diretamente ligada à virtude. Na verdade, Lélio, “o sábio”, o disse; inspirando o trabalho do filósofo romano. Minha amiga Eliana acrescenta: “O amor requer admiração. Não amamos quem não admiramos”. E isto casa perfeitamente com o pensamento deles. O que é a virtude senão algo que admiramos?

3 A natureza também entra nesta brincadeira. Amizade por interesse – a da troca, dos epicuristas – não é amizade. Uma vez que findo o interesse, a ela também se esgota. E todos nós já passamos por decepções assim, não é verdade? Quantas vezes, ao passarmos por dificuldades, aqueles que tanto pareciam amigos se afastam? Por esta razão é que os amigos são os que “lhe amam quando você menos merece”, segundo um ditado chinês, que aprendi com Nakissa.

4 O que quero dizer é que a natureza da amizade tem que estar de acordo com a natureza de quem se diz amigo. Repetindo, como Lima Barreto, Machado de Assis: “Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz”. E aquele que sente, sente quando o outro precisa. Não vira as costas “aflito com seus próprios males”. Enfrentam todos, juntos. E, assim, nestes momentos de fraqueza, distinguimos amigos de “traficantes”. Uma dádiva; uma pena - uma mesma moeda.

5 Anima-te! A amizade anima a alma. A maior riqueza é a amizade. A maior pobreza é a do “espírito” (anima, em latim; psiche, em grego – que também pode ser “mente”). Daí psicologia, psiquiatria. Psicopata é aquele que não é bem da cabeça. Realmente, quem não dá espaço à amizade, não é bom nem da cabeça, nem do coração. É um desalmado.

6 “Dá-lhe, Simpatia!” Isto me faz lembrar das catástrofes televisivas. A ex-ministra Marina Silva disse que “enquanto postergarmos medidas antipáticas de preservação do meio ambiente, famílias continuarão a morrer soterradas”. Verdadeiramente triste. Mas, ninguém gosta da antipática verdade que anuncia o mal previsível. Chamam-na de pessimismo. Ou, como diz Lula, de torcida contra.

7 Além dessa pieguice, dos “otimistas de plantão”, me chama à atenção que catástrofe é só aquilo que aparece na TV. Senão, ninguém vê. Ora, há tantas catástrofes nas ruas do cotidiano. Apesar disso, fingimos não estarem ali. Pela TV, é diferente. Tudo se torna tão distante quanto “O Barquinho”, de João Gilberto. Uma Tsunami que jamais lamberá nossas praias. Quem disse? O que seriam, então, as terríveis cenas de Blumenau?

8 Já, de perto, não. De perto dá medo. De perto, desgraça dá nojo. E, para fugir desse nojo, a negligenciamos (nos aflige os próprios males). O que, por sua vez, aumenta estupidamente o seu potencial. Ninguém quer pensar nela. Chamam isto de otimismo – mas é fator para que tragédias aconteçam; através da brecha da ilusão do que é positivo.

9 “Água!” A vida é uma batalha naval. E quem tem sorte os tiros caem fora. Ainda assim, é gelo fino. Patinamos no jogo do contente de que tudo é maravilhoso, sem olharmos para o lado. Parafraseando José Saramago, "Se começássemos a encarar a vida sem nos escondermos da realidade, talvez pudéssemos viver melhor."

10 Falta amor. Reconhecer o outro como a si mesmo, no lugar da felicidade egocêntrica, falsamente positiva; distante à miséria alheia. Carece transformar o altruísmo “traficante” da sala de estar, num sentimento verdadeiro, pelo cotidiano. Um simples “sentir”. Obra difícil, pois não há gorjeta, esmola, palavra ou qualquer gesto mecânico que substitua um verdadeiro sentimento. Consciência, sem passar com a pança estufada entre os necessitados, desabados pelo dia-a-dia.

11 E eis que sou atendido com um sorriso, ao parar para tomar um café. Simpatia é uma derivada da amizade. Um sorriso abre portas – de preferência, sincero. Hospitalidade, idem. Aquele que recebe os outros é chamado de “cicerone”; justamente pela incrível capacidade de oratória, cultural e de entretenimento que tinha Marco Túlio Cícero. Curioso é que meu amigo Cícero Falcão também é um grande cicerone: dedica todo o seu tempo possível e atenção àqueles que lhe visitam. É amizade que transborda.

12 Abraços, tapas e beijos podem ser demonstrações espontâneas de admiração e, por conseguinte, amizade. No entanto, amizade e amor geram intimidade. E intimidade gera liberdade. E liberdade é uma “faca de dois legumes”. Discussões vêm à tona. Conflitos fazem parte. E Falcão dá a deixa: “Se não tivéssemos ninguém para concordar, ou mesmo discordar de nós, tudo seria solitário, frio e sombrio. Aí, seria sem sentido. Por isso, viva a amizade! Viva as concordâncias das discordâncias!”

13 E é nas discordâncias das concordâncias que, muitas vezes, chegamos às “concordâncias das discordâncias”. É, muitas vezes, na dureza da antipatia que preservamos a vida para momentos de simpatia.

Eis que onde ainda há alma há solução. Anima-te.