A “VIOLÊNCIA” DE RENATO RUSSO

)17.11.2008)

“Assistia o jornal na TV e aprendi a roubar pra vencer. Nada era como eu imaginava; nem as pessoas que eu tanto amava.”

(Renato Russo)

1 Mandei a TV pro espaço. Existe maneira melhor de dispor a minha energia? Certa vez, escrevi a importância da divulgação do Caso Isabella, imaginando ser possível a conscientização humana dos males cotidianos. Mas "a violência é tão fascinante" que os fins tornaram-se os meios, e vice-versa: ao invés da divulgação ser um alerta, é diversão para os que não tem nada a fazer. “Aprendemos a conviver tranquilamente com os Sandros, com os filhos das tragédias urbanas” (autor anônimo).

2 Há ameaça nos céus de Florianópolis. De trás das montanhas, as nuvens não param. Pairam sobre nossas cabeças, chovendo e ameaçando o curto verão catarinense. De cima dos morros, contudo, vem outra ameaça, quase inocente. Uma hora aqui, a outra ali, nos vai-e-vem de suas ladeiras, surgem casinhas singelas. Aos poucos, a vegetação torna-se favelas.

3 Arremessei a TV na cabeça do primeiro que passou. Foi Eloá, Isabella, Ônibus 174, acidente da TAM; tudo num só golpe, na inconsciência daquele cidadão. O amor virou ilusão, moeda de troca, descartável à beira do precipício humano. Renato Russo pondera: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã". Realmente, não há amanhã. Pára tudo! Só há anunciantes. “Tu vê?” Amanhã poderá ser quinze minutos de sua fama, que podem durar horas. “So what?!” Passe no super e compre umas latinhas de sopas Campbell.

4 La vie est dure, mais belle, dizem os franceses. É fato. Não fosse bela, não haveria o impacto de seu lado triste; a beleza ameaçada a qual nos consternamos – ou não. Uma criança sorrindo é belo. E, por esta mesma razão, sentimos quando esta criança, com este sorriso infinito pela insistência televisiva, é atirada pela janela; ou pela janela atiram nela. Porém, não se enganem. Há um prazer animal na desgraça humana que financia os anunciantes. O crime é espremido até a última gota. A família se espreme no sofá, alimentando a última gota.

5 Um dos maiores jazzistas na História foi viciado em heroína. Tornou-se herói ao sair do vício e fazer álbuns ainda melhores do que os anteriores. Espirituais, ele os chamava. John Coltrane escapou da autodestruição. Não é necessário um mínimo de duas pessoas para que uma seja a vítima. Uma só já é o suficiente para seu flagelo – ou não.

6 Joguei a TV pela sacada. De lá, observo as pessoas caminhando, conversando, andando de bicicleta. Em número, sem nome, sem qualquer registro que nos aproxime. Perde-se a identidade à distância. Por isto, o Rio de Janeiro ainda é tão bonito para o carioca. Quem se importa com o que acontece àquelas pessoas? Esquece-se a janela e corre-se para a televisão. Mas, somos nós mesmos! “Eu sei, é tudo sem sentido...”. É Renato, tá russo.

7 É preciso observar; olhar; registrar; parar; aparar. Gosto de observar. O que mais me encanta no meu jardim é ver os “brotos brotando” nos galhos. Parece milagre. Parece que a natureza diz: “ok, aceitamos o seu esforço: nascemos”. Gosto muito de observá-los. Sou contemplativo por natureza – trocadilho implícito.

8 Contemplar o Rio de Janeiro é muito bonito, do aeroporto. Realmente, o Santos Dumont está muito mais agradável. Todo de vidro à Baia de Guanabara e suas rochas. E eis que alçamos vôo: o Rio de Janeiro, visto de cima, é esplendido. Tchauuuu! Um último alento àqueles que caminharam nas calçadas cagadas, lapidadas com os excrementos alheios à nossa vontade. Desiguais, cheias de buracos e defeitos, de carros, de miseráveis, de pombos mais saudáveis que seus habitantes. “E a matilha de crianças sujas, no meio da rua... é a música urbana”.

9 Curiosidade topográfica: no Jd. Botânico, o Pão de Açúcar fica debaixo do Corcovado. Lá, fazia minhas anotações quando uma cliente reclamava: “cadê meu carrinho que estava aqui? Não acredito que alguém o pegou”. Levaram o carrinho dela. Coincidentemente, a mesma cliente achou produtos fora da validade. Há violência nas prateleiras do supermercado. O detergente de R$0,94, foi passado a R$2,95: “Se não conferir, levo uma volta”. Há violência no caixa do supermercado. Enquanto isso, o destemido Shrek sorri, nos bolinhos c/ gotas de chocolate.

10 Ainda no JB, A Ponte de Tábuas não existe mais. Agora o cruzamento é formado pelo Jóquei, o Prédio Invisível, a Praça Otto Lara Resende com o Bar do Careca, e o próprio Jardim; o Botânico. Na Praça do Otto, tem o Otto em seu escritório, em composição de bronze, imagino eu. Na cadeira, desse escritório ao ar livre, jaz um bicheiro. No cruzamento, os carros ignoram o sinal e os pedestres. No bar do careca, a Guarda Municipal nada vê. O Prédio Invisível é de vidro. Reflete a floresta, os morros e o próprio Jardim Botânico. Construção inteligente para mais um local onde a contravenção habita tranqüila, na invisível sujeira urbana.

11 Olho para a TV sem reflexão. Parada, inerte. Divulgando as abobrinhas da Fernanda Young. Não a desligo, pois já está desligada. Não preciso ligar para saber o que dela vem. Tchauuuu! Boto a TV no olho da rua! Suja, claro – a rua, a TV... Digna calçada refletora da imundice carioca. Eu? Não gosto do Rio de Janeiro? Quem não gosta é quem não cuida; quem não quer ver e deixa acontecer.

12. Ônibus: a idéia do primeiro coletivo foi concebida por Pascoal, em 1661, na França. Porém, somente em 1826 surgiu o nome que lhe damos hoje. Stanisla Baudry, dono de uma casa de banhos, em Nantes, resolveu aquecer seu negócio. Colocou à disposição dos clientes um serviço de diligências. O ponto final: uma chapelaria cujo dono se chamava Omnes. Em sua fachada, o seguinte trocadilho “Omnes Omnibus” (que pode ser “Tudo para Todos”, em latim). Todos, então, adotaram o apelido de omnibus. Stanisla, sem perder tempo, pediu autorização para usá-lo como transporte público. Nantes foi a primeira cidade do mundo a adotar o nome omnibus.

174 E é de ônibus que faço minha última parada. Nem tudo é para todos. Onde não há educação a ignorância impera. A ignorância cega, por meio do preconceito. Antes de ser lançado o espetacular filme de Bruno Barreto, já ouvia críticas ao seu respeito. Críticas de quem nem sabia qual era sua proposta. “É mais fácil dividir um átomo do que destruir um preconceito”, já dizia Einstein. E o preconceito nos divide. É o câncer da alma. O pai de toda a violência, de todas as guerras. A flor da estupidez humana.

Retorno a TV à sua prateleira. Quem sabe ela possa me assistir?