FREE – UM TEXTÍCULO INDEPENDENTE

(11.1.2009)

Estava a ouvir a Itapema FM (morar em Floripa e não ouvir a Itapema é como sushi sem shoyo: uma completa a outra) quando ela passou na minha frente. Tive que frear rápido. Nem deu bola. Alguém logo pode imaginar que se trata de uma gata catarinense – ou gaúcha, pois este ambiente aqui está repleto de gaúchas de tirar o fôlego (ufa!). Até mesmo minha dentista faz parte dessa etnia esplêndida. Só que nem tenho tempo para suspirar; já entro no consultório de boca aberta –, ou uma senhora desavisada; talvez, até uma mendiga. Na verdade, não sei. Não a noto. Não a desejo nem a desprezo. Apenas freio o carro num ato incondicional, natural. Ela nem liga. Atravessa-me.

De fato, eu acabara de sair do posto de gasolina, no Centrinho da Lagoa. Era cedo, bem cedo. Os cafés do posto abertos, porém vazios. Exceto por um mendigo que cantava, estirado no chão de um deles, instigando a polêmica de nossas consciências. Tirá-lo ou não tirá-lo? Quantas coisas certas que se negam existem em uma única verdade? Duvidei.

Carreguei aquela dúvida não apenas naquela passagem, mas até hoje – e provavelmente até amanhã. De onde veio? Quem somos os verdadeiros responsáveis pela comiseração? Muito fácil dizer que cada um é dono do próprio kharma, da própria miséria. Mas, como querer que alguém leia se foi exilado da alfabetização, por exemplo? Fica fácil passar a bola e “deixar o abacaxi para os netos”. Só que já somos os netos, cheios de abacaxis em nossas calçadas – agradeçamos aos nossos avós.

Carreguei aquela dúvida desde muito antes, nos conflitos dos camelôs, no Rio – não foi erro gramatical nem de impressão; foi isso mesmo o que quis dizer: o passado, de repente, desce sobre nós como se fosse um presente conflituoso do futuro.

Bem, voltando aos camelôs, apesar de estarem errados, estavam certos. Afinal, estão a serviço da própria sobrevivência. E quem não faria o que lhe fosse de alcance por uma simples questão básica como esta? Nós, no entanto, cidadãos mais bem empregados (e gostaria que atentassem para a riqueza de significados dessa palavra) na sociedade, somos mais benevolentes com os ladrões e assassinos do que com os camelôs. E muito mais complacentes, ainda, com nossos políticos e líderes religiosos, que se apoderam da boa fé daqueles que pouco tem, a alimentá-los com a conjunção das migalhas de suas carências. Finalmente, todos deitamos no chão, a cantarolar.

Será que não poderíamos doar dez por cento, não dos nossos ganhos, mas da nossa compreensão e boa vontade; para testar o resultado da soma desses esforços individuais? Seria tão difícil doar sem esperar pela atitude alheia?

Não deixa de ser uma canção, no chão sobre o qual me deito. Não como mendigo nem como solidário a qualquer um que passe à minha frente. Apenas deito-me. Tão irresponsável e responsável quanto qualquer outro de nós. Nem mesmo a pensar, pois nos iludimos quando pensamos que pensamos. Ao contrário, o pensamento é que se apodera de nós e, se não o tratarmos bem, o perdemos atingido, sem atingir a outra calçada.

E ela passou, sem pensar. Na faixa de pedestres, seguiu de uma calçada a outra; e freei reflexivamente. Pura convenção que nos faz refletir. Simples hábito que nos habituamos sob a Lei. Não importava se fosse galinha ou perua; indigente ou indigesta. Freei (curioso como esta palavra acaba de me trazer à lembrança outra, de outro idioma: free; que não apenas significa “livre”. Mas, também, “liberte”).

Era apenas uma. Apenas ela. Aquela pessoa. Certamente desavisada.

Free-a.