A “OUSADIA” DE MACHADO DE ASSIS

11.10.2008

“Não é amigo quem alardeia a amizade; é traficante; a amizade sente-se, não se diz...”

(Machado de Assis)

1 Ai! Quebrei o dente! E nem era assim que iria lhes dizer. Na verdade, queria falar de comentário da minha irmã, que me perguntou – em referência à minha última crônica – se nunca haveria, eu, carregado bandeja, em praça de alimentação de shopping. Respondi-lhe: “Pois, sim! Por isto, escrevi aquele texto na primeira pessoa do plural”... Ainda assim, o dente me dói... E quebrou-se em alguns pedaços; não em tantos quanto as Bolsas. Ai!

2 Quem foi que disse que é muito triste dormir sem ter em quem pensar? Ah, já sei. Foi uma cliente de café, no Café do Centrinho da Lagoa, conversando com a garçonete. Curioso. Sempre achei a mesma coisa. Chato ficar sem tem em quem pensar. Daí, inventava. Inventar é mais fácil, mais clássico; menos romântico, todavia. Mas, o bom mesmo, é lembrar de alguém. Isss... é o dente!

3 Dente não. Gengiva. O dente já foi pro espaço sideral no último canal. Morto, já estava. Em jazigo ilustre e funcional. Como um tijolo que se encaixa à estrutura. Ainda assim, todos sabemos que a corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco (esta é antiga). Por isso, dói o dente, a boca, o dia, a mente, o bolso. Ihhh!

4 Magine você: no exato momento anterior à mordida do ovinho de amendoim: a TV à sua frente; créditos do DVD em todo o esplendor gráfico dos dias atuais; a mão, suada, calejada, vai, mecanicamente, à tigela a trazer aquele objeto de desejo, de gula, redondo, áspero e branco; sem noção do perigo que lhe corre. Hipnotizado pela Paramount Pictures, leva-o à boca. Crack! Seu humor e bolso será, neste momento, taxado, esfacelado em R$2000,00. Isto sem contar a dor, a duvida incoerente entre pausar o filme ou correr para o espelho do banheiro; e o pânico de saber que algo seu, totalmente seu, que vem a carregar por toda a vida, esfarela-se, num piscar de olhos. Ou de ovos. Ahhrr!

5 Mas eis que falo tanto do dente e nada do que falaria. Minha irmã. Esta, muito meu último texto criticou. Principalmente, na questão social; do desemprego e da utilidade de não dispormos dos restos dos fast-foods das praças de alimentação, às lixeiras. Sylvana (minha irmã) mora na Holanda. Mais. Tornou-se holandesa de corpo, alma e passaporte. Lá, não é como aqui. Aqui, precisa-se de emprego (putz, este dente – gengiva, de fato – dói muito mesmo, nossa!). Lá, desempregado ganha bem. E, por isto, houve uma certa distorção entre nossos (meu e dela) valores. Deixa quieto.

6 Uff! Dói-me a gengiva e nem quero saber mais das distorções sócio-culturais entre mim e Sylvana. Gengiva que, aliás, me lembra o líder mongol Genghis Khan. Seu neto, Kub’lai Khan, teve educação privilegiada, graças à visão de sua mãe – que não levava (nem lavava) bandejas em shopping centers. Graças a isso, Kub’lai conseguiu o sonho de unificar a China; além do primeiro sistema de correios eficiente, do mundo; e a utilização principal dos rios, como meio de abastecimento e comércio (os mares deixavam os navios chineses à mercê dos piratas). Sua ambição terminou “fora da casinha” e naufragou na fúria Kamikaze (vento divino, em japonês) ao tentar invadir aquele arquipélago. No além da conta pagamos além da conta; como no frenesi financeiro da estéril realidade, que se desmonta em seu cultivo por celebridades e supérfluos; ou eu, na minha mordida dramática d’um ovinho da peste, cabra macho sim senhor. Eita!

7 “A Fúria de Khan” (que não pertence à dinastia mongol) foi um dos clássicos da série “Jornada nas Estrelas”, no cinema. Atuava como vilão o legendário Ricardo Montalban; e, como protagonista, o estelar, viajante e infinitamente vivido por Willian Chatner: Capitão Kirk. Chatner – ou melhor, Kirk – usava um aparelho que, naqueles tempos, dizíamos: “Que cascata!”. Hoje, chamamo-lo de celular. Exageros à parte, a tecnologia sempre exagera.

8 Nem por isso minha dor chega ao exagero. Dói dor que incomoda. Machado de Assis, contudo, sem se incomodar com possíveis críticas, também não exagerou: “Nasci com certo orgulho, que já agora há de morrer comigo (...) Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários”. Crítica crônica, sem exageros. Ousadia de não se entregar à modéstia. Nem dor de falso pudor.

9 Crônica é crítica. Não tem jeito. Até porque, o dia-a-dia é de crítica. E crônica é dia-a-dia. Somos criticados até pelo corte de nossos cabelos. Há duas semanas, quando fui mergulhar, dois amigos, que não me viam há algum tempo, zombaram (num excelente humor) da minha opção de cabelo e barba. Chamavam-me de “Moisés”. Retruquei-os, no mesmo tom: “para quem já atravessou o Mar Vermelho a pé, mergulhar é brincadeira”.

10 Vem de Moisés o que quero dizer; e é o que digo: “Amar ao próximo como a si mesmo”. Não há como amar alguém sem saber o que é bom para si mesmo. E alguém que não se ama, não consegue amar. Não conseguindo ser amado, em contrapartida. Triste fim dos princípios. Sem querer ser vodu ou profeta, digo o óbvio: “como podes tu saber amar, se não te amas?” Este é o princípio básico da simples amizade – e o que é simples, básico, é verdadeiro. O silêncio dos inocentes. De brandura trivial. Doçura (já esqueci da dor, de tanto que “falo”; e ainda não sei como acabarei esta crônica de tantos assuntos).

11 Fato, é que não sei como a acabarei. E sigo. O que me leva à livre literatura – sim, pois a crônica é a mais livre das formas de expressão literária; segundo eu mesmo. (Ih, me perdi!...)

12 Ah, sim. Falava da liberdade literária, quando percebi que as linhas chegam à exaustão. Não à minha. À sua, leitor. Portanto, por fim, resta-me dizer duas coisas: seja amigo (sem exageros ou estardalhaços), pois a amizade é a única riqueza viva e real, desta vida; e tome cuidado com os traiçoeiros ovinhos de amendoim.

Ai!