O “CANALHA” DE NELSON RODRIGUES
“Por todas as esquinas, e botecos, e salas, e retretas da memória, há canalhas em flor. Eles nos atropelam e nós os atropelamos”
(Nelson Rodrigues)
1 O “Canalha” estava ali, em sua nudez essencial. Apresentou-se a Nelson pela primeira vez, num entrevero de família – a vizinha a gritar para o seu genro “canalha, canalha, canalha!”. Não pela qualidade evocada – já que quanto mais rica a palavra é verbalizada e sujeita à abundância de significados, menos tem qualquer significado. Ao contrário, esse momento tornou-se lhe, não uma obsessão, mas uma epífane. Mais que o termo. Seu caráter. A quintessência da figura do “Canalha”. Transcendental, não possível de ser posto verbalmente, ou em simples figuras; de linguagem ou de retórica. Nada disso. Desconstruir-lhe é como tentar definir um sentimento. Isso. O “Canalha” é muito mais que um mero adjetivo. É tema intangível à tese de Doutorado. Inabordável em metáforas, analogias, situações...
2 Contudo, sua verdade está na alma. E lá, naquela alma, não podemos chegar com tanta educação ou erudição; ou formalidade ao ponto de pedir-lhe licença. Não. O “Canalha” não lhe dá licença. O “Canalha” fecha a porta na sua cara – que somente Nelson, um Indiana Jones a puxar o chapéu pela fresta que lhe resta, transpôs.
3 Portanto, eis que se esconde na multidão. Um ‘Wally’ da confusão cotidiana; da corrupção, da falcatrua do amor, do dinheiro, do poder e da religião. Muito árduo saber quem é quem. Tampouco o “Canalha”, de Nelson Rodrigues. Não se iludam: não basta ser escroto para ser “Canalha”. Tem que carregar aquele ar incólume.
4 E na vida que se segue, um evento me acontece. Na serra para Curitiba; engarrafamento. Sim. Simples e boçal engarrafamento. Grande coisa. Contudo, para a pessoa que lhes escreve, uma jaula – engarrafado só whisky: o “Cachorro” do Vinícius. Aliás, whisky se escreve de diversas formas: whisky, whiskey e uísque. Enfim, voltemos à garrafa.
5 Enjaulado, subindo a Serra, o tráfego chega a um ponto de convergência. É minha vez de entrar na “agulha”. Esperto, um Voyage enferrujado, e sua família, toma-me a direita que me é de direito. Indignado, olhei para o lado. Janela do carona, aberta; repreendi-o. Sem olhar, com um sorriso intrínseco de deboche, continuou a sua agressão. Inadvertidamente, naquela troca de gentilezas, não percebi a presença de um daqueles cones de sinalização. Enfim, “atropelei-o-o”... E a história vai literalmente adiante. Porém, não aonde quero chegar.
6 O que quero dizer é que o “Canalha” não se trata apenas daquele cafajeste mulherengo. É o política e socialmente correto capaz de atravessar-lhe uma faca pelas costas; nas costas. Vissem aquele sujeito cinqüentenário em seu Voyage mal-passado, cinza como a luz daquele dia, em situação corriqueira, chegariam ao ponto de traduzi-lo como um simples pai de família e sua família. Em seu Voyage na Bola da Vez, um ser incapaz de forçar passagem pela direita e aproveitar-se de toda a sua ferrugem escamiforme (valeu, meninas da Bio).
7 Desta forma, estava eu – sim, eu – na presença célebre do “Canalha” a atropelar-me. Aquele que Nelson diz que assiste a missa como se fosse um “gentleman” – iludindo a todos; menos a ele, o Nelson. E eu em meu ego, meu afã de não me deixar ser injustiçado, minha cólera animal vespertina rodoviária, meus pacotes de chiclete a mastigar nervosamente, deixei me escapar esta nobre presença.
8 Escapou-me esta coisa quase que rara da identificação legítima do “Canalha”; tão imperceptível pela direita. Como pude me deixar distrair?! Era um momento de fotografia. Não. Talvez, acompanhar e fazer anotações. Que isso! Imagina. Ridículo. Jamais. Simplesmente olhar e ver até aonde a canalhice (adquirida, congênita ou hereditária?) pode se expandir; e vi – realmente eu o vi, em seu sorriso maroto, como um drible do Robinho –, quando ainda fez sinal para o fiscal da CET, que o meu carro arrastava o cone indefeso; a arruinar o escapamento.
Perdi-me em cólera. Perdi-o, em minha cólera.
9 O fiscal da CET que me multou, não. Aquele é apenas um porco, no melhor sentido georgeorwelliano da palavra. Alguém com vontade de exercer seu débil poder e que não tinha em quem cuspi-lo, com sua proteção facial à poluição e o casaco para frio de alto de serra. O canalha do Voyage, sim, era um verdadeiro “Canalha”. Um espírito de porco (diferente do somente porco), em última instância, escamoteado pela aparência urbanamente aceitável – o verdadeiro engodo: o “Canalha” em flor.
10 Por ironia, personagens de minha crônica. O canalha – que prosseguiu sua viagem em seu Voyage Bunda de Fora –, deixando-me à mercê do porco espinho vestido de fiscal, e sua máquina fotográfica insolente, aderente à calça reluzente à mística da neblina alheia à tamanha injustiça.
E cá estou, o babaca aqui, a escrever sobre eles. Pode?!
Que canalha!
w a l t e r m o r e n o