A PÁTRIA DO SALVADOR

Para nós, crianças do Beco da Santa Casa, a chegada da tarde era motivo de muita alegria e algazarra. Não sei de onde aparecia tanta gente miúda para brincar, correr, bater bola na parede. Eram horas de tanta felicidade, de tanta alegria e que passavam tão rapidamente.

Às vezes, trocávamos nossas brincadeiras por curiosas aulas de História! Quando nosso vizinho, Salvador Duenhas, sentava-se em frente a sua casa, corríamos e sentávamos no chão, ao redor dele, para ouvir seus relatos sobre a guerra. Como centenas, milhares de outros, fora mandado à Itália, combater o desalmado inimigo, na Segunda Guerra Mundial, e contava para a meninada os episódios que lá presenciou e vivenciou. Cada dia, ele nos esclarecia os segredos e horrores de uma luta, de uma trincheira, de noites mal dormidas, de constantes vigilâncias, do estresse provocado pelo pipocar das metralhadoras, das tristezas quando havia baixa no acampamento. Às vezes, empolgava-se ao relembrar cenas marcantes, ficava vermelho, o semblante transmitia tristeza... Nesta hora, quedávamos silenciosos, consternados, complacentes. Em nossa frente, um herói! Vira a morte de perto e só escapara por não ter chegado o seu momento.

Contou-nos que todos os combatentes, fervorosos ou ateus, rezavam e pediam a Deus proteção a cada dia. Até promessas faziam.

Relatou-nos da morte de Frei Orlando. Uma grande tristeza representou para eles a perda do capelão amigo. Morte, assim, por um mero acidente...

Relembrava os amigos que, finda a guerra, com ele, retornaram vitoriosos. Foram dias de sufoco e medo, mesmo com a grande alegria e a expectativa de rever a família. os amigos. Tinham o máximo cuidado de não atirar ao mar nem um toco de cigarro, que poderia ser fatal, servindo de pista para algum submarino do inimigo! Declinou nomes como Vicente Valério, João Okada, Osmar, Reni Rabelo, Pedrinho Gontijo, Major Guadalupe, Agripino, Cabo Guimarães e outros de que não mais me lembro.

Depois, na realidade do dia a dia, outra a luta para se livrar dos pesadelos e fantasmas da guerra. Hoje, a mãe gentil, a pátria amada, em seu seio, o embala.

Publicada no Jornal Agora de 04 de julho de 2010.

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 13/07/2009
Reeditado em 17/07/2010
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