A VINGANÇA DO PEREBA

A VINGANÇA DO PEREBA

Eu não era um dos mais espertos da minha turma de moleques, mas também eu não era nenhum bobão. No jogo de bola de gude, eu me garantia e com muita competência , também fazia as melhores e mais incrementadas pipas , que eu mesmo vendia, e que me valia sempre uma graninha extra para o cinema de domingo, permitindo vez por outra fazer uma gracinha, e convidar uma menina para um sorvete. Na maioria das vezes, ficava só no sorvete, eu era e ainda sou de uma timidez quase patológica, e se a menina não tomasse a iniciativa que era raro acontecer, a minha paquera não passava de uns risinhos sem graça, e tchau, até domingo. Voltava a me juntar aos outros moleques, onde eu era considerado, e até certo ponto respeitado, principalmente por ser bom de briga, quase uma necessidade para um moleque de pequena estatura. O que me salvava, era uma força física um pouco acima da média, que dava para rechaçar os maiores que gostavam de mostrar valentia, toda a vez que encontravam os menores . Assim fui ganhando uma espécie de liderança, e a fama de possuir muitos conhecimentos e sabedoria. Sabedoria que não passava de uma grande malandragem. Minha mãe, apesar de ser de uma família humilde e de nenhum doutor ou intelectual, gostava de ler, e aprender coisas novas e também gostava de comentar com os filhos as últimas novidades ,invenções, acontecimentos políticos , esportivos e tudo mais que ela achava relevante. Meu pai foi a única pessoa que eu conheci, que ouvia, e com muita atenção o programa A VOZ DO BRASIL. Está claro que eu não entendia patavina, mas aprendia os termos técnicos, e repetia para os outros, que ficavam admirados com o meu cabedal de conhecimentos. E ainda não falei do meu vasto repertório de piadas do Bocage, do papagaio e tantas outras que me colocavam em posição de liderança quase absoluta . Quase, e nunca passou do quase. Pois era só ele chegar, (O meu adversário secreto) e o meu brilho se apagava no ato. ”Cala tudo quanto a antiga musa canta, que um valor mais alto se alevanta” E lá vinha ele, com aquele riso boçal, boçal mesmo, desconfio que sabia e tinha o prazer de me derrubar. O Tião, o sujeito mais desprovido de talento que eu conheci, de uma ignorância que beirava o retardamento mental. Mas quando ele chegava, não tinha pra ninguém. E de nada adiantava minha empáfia, que toda a minha prosopopéia caia no vazio. Todo o palco e todos os holofotes eram dele, ou dela. A BOLA!!! Era uma bola safada, daquelas de borracha vermelha, que murchavam na terceira, e se dividiam em duas na quarta pelada. Mas quando chegava, causava o maior reboliço, rolando em direção à turma que começava a gritar entusiasmada, já escalando o time pro “racha” que ia começar assim que acabassem de escalar os dois times. Quando o número dos garotos era par, eu era escalado, caso contrário, eu ficava de fora, só olhando, e remoendo a minha mágoa. Ser ruim de bola era um defeito imperdoável, e não havia nenhuma consideração , perdão ou condescendência. O pereba era execrado sem dó e sem piedade. Pereba é pereba! Eu ria, e fingia que não me importava que eu não era de passar recibo, mas doía saber que em alguma coisa, todos eram melhores do que eu.

A segunda parte da história aconteceu quando a minha avó foi passar uns dias lá em casa. Eu gostava muito dela, apesar do seu jeito disciplinador, severa como um sargento de cavalaria, não era de dar moleza pra molecada, e não podia ver nenhum à toa, que ia logo arranjando uma missão pro malandro, que ia resmungando, mas ia. Ninguém se atrevia a desobedecer a uma ordem,ordem mesmo da velha matriarca . Vó Maria mandava e desmandava, protegia, decidia, resolvia e executava, e ainda rezava cobreiro, espinhela caída, quebranto, olho gordo... E corria a fama de ser uma grande vidente, e frasista das melhores. Mas isso já é outra história... Jogava no bicho quase que diàriamente. Eu era sempre o escalado para a nobre missão de levar a lista com a aposta, e depois voltar ao ponto, pra pegar o resultado. Isso me conferia uma certa importância, e mais a vantagem de ganhar uns trocados quando ela dava a sorte de acertar, o que não era raro acontecer, e para ela, a gratificação aqui do estafeta era sagrada. E foi assim... Não estou lembrado da ocasião, mas vou fazer de conta que foi no outono, só para dizer, numa bucólica tarde outonal,( Adoro esta frase), Cheguei no ponto neste dia para pegar o resultado e fazer mais uma fezinha no jogo da noite. O ponto de bicho ficava um pouco distante da minha casa, o que valorizava a missão. Na rua de terra havia um muro alto, que era os fundos de um clube de futebol chamado Corinthians não sei das quantas, só lembro o Corinthians por motivos óbvios. A frente do clube ficava na outra rua. Já de volta, e cumprida a tarefa, notei que a rua estava praticamente deserta, eu e uma carroça, que ia bem lá na frente. Só se ouvia mesmo a algazarra que vinha do campo de futebol. Estava acontecendo um jogo, e pelo barulho , a partida estava quente. Foi quando ouvi o baque seco de um chute e vi a bola subir além do muro. Percebi que ia cair ali na rua, e na minha frente. Não pensei duas vezes, acho que não pensei nenhuma vez. Apenas corri na direção onde eu achava que ela ia cair, e não errei, chegamos juntinhos,.

Eu me senti o próprio García, (goleiro do Flamengo na época) agarrei a bola contra o peito, e continuei correndo num só fôlego até em casa. Ofegante e quase a ponto de desmaiar, eu era o feliz proprietário de uma cobiçada, sonhada, ambicionada e os cambal..de uma bola de couro profissional número cinco! Queria só ver quem teria a coragem de me barrar. É bom esclarecer, que uma daquelas, não dava sopa por aí, Só nos clubes organizados, e profissionais. Por isso era o sonho de todo o moleque pobre. Passei o resto do dia cuidando do meu tesouro, que me custara tanta correria e um pouco de culpa, por ter surrupiado a bola no meio do jogo, mas afinal, eles têm outras, e o jogo não iria parar por causa disso. No dia seguinte não me juntei à turma, fiquei de longe, esperando a hora de fazer a minha entrada, sem nenhuma modéstia, triunfal...Avistei o Tião, que vinha chegando com a sua sórdida bola de borracha vermelha, e o seu risinho boçal. Me adiantei à ele, e rolei a minha belezura em direção da molecada, agora, extasiada e muda diante de tal preciosidade. Tião ainda tentou fazer umas firulas, mas a vermelha já meio murcha, sequer conseguiu quicar . A estrela do momento era a gloriosa número cinco, debaixo do meu braço direito, enquanto eu marchava como um general romano seguido pela molecada rumo ao campinho, para o ” racha” que iria mudar a história das peladas do bairro do Barata em Realengo. Não quis escalar o time, pura demagogia, mas é claro que eu fui o primeiro a ser escolhido. Onde já se viu barrar o dono da bola? Meu time perdeu de Três a um. Mesmo assim eu estava radiante, E como diria o Zagalo: tiveram de me engulir . Infelizmente, a história não termina aqui . O Tião foi remoer o seu ódio com outra turma, onde a sua murcha e sórdida vermelha, na falta de outra, era bem-vinda . Eu, se não estou enganado, no terceiro ou quarto racha, percebi que o meu time estava jogando com um homem a mais. Fui comentar com cara que havia escalado, ele me respondeu, que era assim mesmo. O time que jogava comigo, tinha direito a mais um... Fingi que não havia entendido, e na primeira oportunidade, isolei a bola pro mato, e ainda me ofereci pra ir buscar. Lá mesmo,achei um caco de vidro e fui cortando as costuras, furei a câmara de ar, e quando eu voltei, joguei no meio do campo o que restou da gloriosa. E para o espanto de todos, que não entenderam nada, fui logo dizendo: Sabem de uma coisa? Eu não gosto de jogar futebol, prefiro soltar pipa... Levei muito tempo para me reabilitar com a cambada. Mas o Pereba estava vingado...

SÃO BETO