JANTAR À FRANCESA
Quando vim à Capital para cursar o ginásio, aos dez anos, foi como se, hoje em dia, tivesse conseguido uma bolsa para estudar no estrangeiro. Passei a morar com os avós - por quatro anos - e só voltava ao interior para rever a família nas férias de julho e de verão. A comunicação era por cartas, que demoravam a chegar. Os avós não tinham telefone. A viagem de ônibus durava mais de cinco horas, com duas barcas para atravessar os rios. Hoje, o percurso se faz em menos de duas horas. A mesada era curta, afinal, o colégio era caro – um privilégio – e eu tinha irmãos menores, na época três, depois, quatro. Inicialmente, a questão econômica não afligia, mas, a partir de certa idade, complicou. É que começavam as excursões de turma, as reuniões-dançantes e coisas do gênero, vocês sabem como é. Quando o dinheiro chegava, pagava algumas continhas, comprava um livro, comia dois doces de batata, tomava uma Coca e a verba minguava, quando não acabava de todo. A família não era pobre, o pai era médico bem-sucedido na cidade de Encantado e região, mas a moral e o contexto econômico daquela era tinham dimensão completamente diversa destes tempos de consumo, facilidades e boa vida. Vivíamos praticamente em outro planeta, para a melhor compreensão dos mais jovens. E era muito bom, acreditem.
O dia a dia na casa dos avós era agradável e sereno, as refeições sempre fartas - da comida italiana à portuguesa mais legítima. Antes de dormir, preparavam-me mingau de aveia ou de maisena com canela e, no inverno, leite quente com seis ou sete dentes de alho. Ao meio-dia, era recebido com um cálice de vinho do Porto para emborcar com uma gema crua de ovo. Portanto, o problema econômico tinha uma cara eminentemente social, quer dizer, de vida em sociedade, tipo festas e confraternizações. Os avós não tinham como bancar os chamados do lazer e nem achavam adequado fazê-lo: era a filosofia dos anos cinquenta e sessenta. Mas a gente ia dando um jeito, o que redundou nos anos setenta e décadas posteriores.
Na formatura ginasial anchietana, alguns colegas insistiram para que fosse jantar com eles num restaurante de certo nível; hoje, eu diria que era um restaurante classe B-, que existia na Praça Júlio: eram garotos da Capital, saudáveis, bacanas, de boas famílias, mais abonados ou mais modernos. A pressão foi forte e tive de comparecer. Pediram galeto, filés e pratos arrebatadores. Menti que já havia jantado, porque mal me sobraram trocados depois de pagar o bonde - a mesada já nos estertores. A fome apertou e consultei meticulosamente o cardápio, com pose de distraído. Afinal, descobri um prato que cabia no meu orçamento minguado. Para espanto dos colegas, pedi pelo nome bonito e barato: um “couvert”. Afinal, era minha primeira janta fora. O garçom fez cara estranha, mas me trouxe umas fatias de pão torrado, algumas bolinhas de manteiga e umas 4 ou 5 azeitonas. A turma deu risada, mas insisti que estava sem apetite e que era só para acompanhar. Não houve bullying nem nada grave, foi uma reação simples e natural da galera perante situação incomum, inesperada. Não preciso dizer que, meia hora depois, verde de fome na potência de meus 14 anos, estava atracado numa coxinha de galinha que um dos colegas felizmente refugara e me oferecera, talvez em discreto gesto de nobreza e generosidade.