Causos, uísque e oferenda
Ninguém que tenha nascido numa cidade pequena consegue esquecer os seus “causos” e personagens. Embora use pouco este espaço para contá-los (até porque boa parte deles pressupõe contextualizações), às vezes me pego bastante saudosista a ponto de me sentir impelido a dividi-los com leitores que provavelmente nunca ouviram falar em Boa Nova-BA.
A seguir duas histórias verdadeiras da época de minha adolescência (década de 1980), que ganharam status de “causo” por conta do tempo e das circunstâncias um tanto inusitadas em que ocorreram. Dei nome às duas apenas para identificá-las, embora na tradição oral títulos são perfeitamente dispensáveis.
A primeira – “Uísque com sorriso” – é uma referência aos muitos boanovenses (entre milhares de outros nordestinos) que deixaram sua terra natal para tentar a sorte em São Paulo. Vários deles foram, ficaram, casaram-se e tiveram filhos lá na terra da garoa.
Em mais de três décadas, a partir de 1970, Boa Nova conseguiu manter verdadeiras colônias em São Paulo, principalmente na capital. Alguns, no entanto, não perderam o hábito de retornar à terrinha em suas férias ou na principal festa da cidade, a da padroeira Nossa Senhora da Boa Nova, comemorada no dia 8 de setembro. Foi num retorno destes que surgiu a história a seguir.
Com um visual “boa pinta”, para mostrar que estava cheio da grana em São Paulo, Tenório (nome trocado por uma boa razão) chegou à cidade num dia de festa no clube social. Cheio de pose e sotaque paulista forçado (uma ofensa para quem ficou, diga-se de passagem), ele não economizou na beca e a todo tempo era visto com um copo de uísque na mão. Sempre que saía para dançar com a garota que havia conquistado, deixava a bebida na mesa, que comprou e dividiu com os amigos. Estes, vendo que ele estava mesmo endinheirado, resolveram aproveitar da situação... Era só o tempo de Tenório sair para dançar, que a turma esvaziava o seu copo. O “paulista fajuto” voltava, constatava que havia sobrado só o gelo, reclamava, mas logo ia ao bar reabastecer.
A cena se repetiu umas cinco ou seis vezes até que, num determinado momento, ele não aguentou mais e bradou, com a boca completamente murcha: “pô, gente, mas nem com a minha dentadura no copo vocês dispensam?” Quem estava nesta hora jura que viu gente se espalhando pra todo lado, com a mão na boca, segurando para não chamar juca, raul...
A segunda história – “A oferenda” – também teve os nomes dos protagonistas omitidos porque o mundo é muito pequeno... Ela aconteceu na primeira metade da década de 80 e foi testemunhado por um ex-coroinha idôneo.
A testemunha, hoje um respeitável político do município, conta que era a Missa principal da semana, no domingo à noite, e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Nova estava lotada. No momento da tradicional oferenda, lá estavam as duas cestinhas na frente do altar à espera dos generosos fiéis. Eis que, de repente, o ajudante do padre vê uma cena inusitada: um conhecido pão-duro, que nunca foi visto naquela fila, estava lá todo convicto do que iria fazer. Claro que o coroinha manteve seus olhos bem atentos – quase um binóculo – no valor que iria ser doado. “Será que o mão-de-vaca tinha se regenerado, em nome de Deus?” Pensou o menino.
Finalmente chegou a vez do afamado muquirana depositar a sua oferenda. Meteu a mão no bolso de trás da calça, tirou a carteira marrom já bem puída, abriu e tirou... 5 reais (já feita a conversão dos cruzeiros da época)!!! O coroinha esfregou os olhos para ter certeza de que estava vendo mesmo aquilo e, rapidamente, voltou a mirar a cena. Sim, eram mesmo 5 reais (uma verdadeira fortuna para um mão-de-figa daqueles doar a quem quer que fosse). “Deus seja louvado!” – disse o quase adolescente.
O sujeito, então, colocou a nota na cestinha, demorou um pouco, vasculhou o conteúdo, contou quatro notas de 1 real e procurou as moedas no fundo até encontrar uma de 50 centavos. Pronto! Agora já podia voltar ao seu lugar. A doação estava feita e o troco, devidamente conferido. Quanto ao coroinha, ele disse que deu um riso-de-canto-de-boca e pensou que não seria daquela vez que testemunharia um milagre.