DIA DE POESIA

Era uma tarde escura, mas uma escuridão tão intensa que de acontecer por não existir revertia em objetivo.

Eu me julgava poeta, quando de volta a Eugênio de Castro e a Camilo Pessanha, contorcia-me até o sumo que produz sobra para tornar inteiro. Deslizava no quintal de Rimbaud, passava uma chuva no sobretudo de Mallarmé ou na mesma chuva de resignação de Bandeira, ou no triste fim de Verlaine por certo Lima Barreto. Aquela tarde se fizera de sonho antecipado da humanidade. Ou a humanidade é que sonhava, não sei... Restavam-me os poetas que me ensinaram um jeito de sofrer para não sentir a vida escapar. Assim me escorregava nas páginas já ausentes dos autores. Estariam mortos; teriam vencido a vida. Eternos.

Deixar de ser poeta parecia conquistar-me, como coisa que se devolve por rejeição. Parecia acender a tarde numa solidão revestida para egoísmo. Alegria? Apenas o que ajuda a viver. Para ocupar-me de contentamento seria preciso abandonar o alcance dos outros estados de espírito. A alegria não para ser conquistada, mas para ser alegre. A tarde existia, por que não? Como matar Augusto dos Anjos se ele se tornara meu crime de vida? Como esperar H. Dobal numa emboscada se o autor de o tempo consequente é o abismo profundo do jagunço? A alegria estivera dentro das coisas e só nelas eu encontrava a essência perdida na vitória de mim, corpo negro daquela tarde em Castro Alves do Brasil.

Eu estava sozinho de tanta delícia. No rosto, uma expressão em vez de tempo. Nas mãos trazia jornais, revistas, livros, feito quem escapa dos próprios passos... Não percebia que caminhar deixava distância. Nem no estrondo das ruas meus olhos se entregavam; o tempo de viver não me derramara, senão num suspiro tão acostumado a ser meu que só quando ausente é que o tinha.

Enquanto lia, não lembrava que estava lendo. As histórias todas em algum lugar do mundo que não se vê: ver substitui a vida. Sim, cuidava que, enquanto não estivesse vendo, teria uma morte de vida. Estava em transe e ninguém avisava nem escondia nada. Não me reduzia a mim, a ponto de esgotar nos outros alguma reserva de esperança minha. A realidade, uma resposta de terceiros nos túmulos vazios dos poetas. Era o epitáfio "Se Eu Morresse Amanhã", quando é tarde demais para esse fim.

Eu alcançava a artéria dos autores. Só quando também somos poetas leitores alcançamo-na. Na meia-luz, um toque de Midas: Mário Faustino tem todo o tempo do mundo para explicar seu fim. Mário de Sá-Carneiro pela porta dos fundos, num futuro possível, porque deixado para trás. Todos se salvaram, não compareceram às suas mortes.

Afinal, não há falta na ausência, repetia eu na tarde escura, num dia de poesia.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 15/03/2009
Reeditado em 10/01/2011
Código do texto: T1488447