"O CABROEIRA" EM RETRATO DE UMA ÉPOCA
“O CABROEIRA” EM RETRATO DE UMA ÉPOCA
Em uma manhã de brisa suave, quando ainda quase criança, debruçava-me em uma das janelas do oitão da casa de meus pais, em nossa propriedade, fronteiriça à parte leste do engenho, e contemplava o manto branco de nevoa, que pairava sobre a mata ainda intocada pelo homem. Ouvia-se o trinado dos pássaros vindos de todos os lados do pomar ao redor da casa e, do alto da frondosa palmeira branca, o estridente cântico do canário da terra se fazia ouvir. Era nessa árvore alta e de talo grande, onde o canário e o sanhaço costumavam fazer seus ninhos, entre uma “catemba” e outra, - a parte inferior do talo, que se liga ao caule da palmeira. Ainda num período de bonança, embora alem do meado do inverno, já começando o amadurecimento do arroz e do fumo, dos quais, os pássaros apreciavam seus grãos, e as sementes de suas flores. Só para lembrar, na faixa litorânea da zona da mata nordestina, tinha-se como inverno o período que ia de meados de janeiro, a meados de julho e o outros meses eram tidos como de calor.
Eu ficava por tempos a fio, contemplando tudo o que podia alcançar através da minha aguçada curiosidade. Em um dado momento, olhando mais para o lado direito da casa, que tinha suas janelas para o poente, pude observar os homens caminhando, com seus instrumentos de trabalhos sobre os ombros, em toda uma extensão de um verde intenso; essa pintura para os olhos era a cana de açúcar, que com muito vigor brotara do solo onde havia sido plantada. E como era bonito de ver todo aquele baixio das terras, parecendo desenhos enfileirados, donde os pintores se achavam no centro do grande quadro, como pequenas manchas brancas, “os cabroeiras”. Eram as terras do Engenho Canástula, encravadas entre as serras formadoras do Planalto da Borborema em solo paraibano.
Esses trabalhadores, geralmente trajavam calças de mescla azul ou bege e camisas de punho, que eram imprescindíveis para o trato com a cana de açúcar.
Fazia mais de três meses, que a lavoura canavieira havia sido plantada. Lembro-me que em meados de janeiro a inicio de fevereiro, começava o preparo do solo, para o grande plantio da lavoura de cana de açúcar desse engenho. Os moradores acordavam cedo, tomavam o café preto, comiam farinha com um pedaço de carne ou peixe, biju ou tapioca feita da fécula da mandioca e, logo depois, pegavam um martelo e colocando a folha da enxada sobre um pedaço de trilho de linha férrea, rebatiam sem parar, até que o instrumento ganhasse um fio de corte, era como os trabalhadores amolavam suas enxadas; outros dispunham de um facão, tipo rabo-de-galo, e esse, era afiado sobre uma pedra de amolar, pra lá e pra cá, por inúmeras vezes, até conseguir uma lâmina altamente cortante, já que precisavam desse instrumento no corte da cana.
O trabalho começava por volta das sete horas da manhã, indo até ao meio dia, ou sol a pino, como costumam falar na região, paravam para o almoço, retornando entre uma e uma e meia da tarde e se arrastando até as dezessete horas, quando todos largavam do eito e seguiam em direção da casa grande, para beber um pouco de cachaça (uma lapada, um gole, umas e outras), oferecida pelo patrão, no interior do “enchimento” – local de guarda da aguardente – que ficava ao lado da casa grande, e depois iam banhar-se no rio. Após esse quase ritual, retornavam as suas casas, para o merecido repouso, antes do próximo recomeço.
A terra era lavrada por mãos dos trabalhadores e seus instrumentos de trabalhos: a enxada e o facão ou trincha, nome costumeiro no brejo paraibano, quando muito, usavam arados movidos por tração animal. Após o preparo da terra, “os cabroeiras”, como conhecidos nos trabalhos dos engenhos, cavavam sulcos na terra, ou valas onde eram deitados as bandeiras ou toletes da cana, cortadas com a trincha, medindo aproximadamente dois palmos entre um corte e o outro; à sobra entre os cortes, dava-se o nome de capão, muito apreciado pelas crianças, filhos dos moradores do engenho, isso quando seus donos permitiam que desfrutassem dessa iguaria, que é a cana de açúcar, cultivada no massapé, terra própria para o cultivo canavieiro. Outros homens do adjunto vinham cobrindo as valas com as bandeiras deitadas sobre elas.
Da plantação à colheita, leva de doze a quatorze meses, para o amadurecimento e corte. Nesse período, os campos de cultivo levam de duas a três limpas, e consequentemente o despalhamento, ou seja, a remoção das palhas ou folhas secas, que vêm a formar a base do palheiro, após o corte da cana para a moagem.
Chegada a hora da colheita, os cabroeiras, munidos de um bom facão bem afiado, reuniam-se pela manhã no campo, trajando suas vestes típicas. Alguns colocam um pedaço de fumo de rolo na boca, outros acendem seus cigarros de palhas e há ainda aqueles que inspiravam um pouco de rapé. A mim, parecia um ritual esses momentos, em que eles se preparavam para o árduo trabalho do corte da cana.
Com o braço esquerdo, abraçavam de cinco a seis canas e empunhando a trincha com a mão direita vão cortando os caules, bem rente ao chão, e depois, descartando o olho, ou seja, a folhagem no topo da planta e, vão deixando para trás o eito de gomos cortados.
O transporte da cana de açúcar era feito em lombo de mulas, que em se utilizando a cangalha, equipava-se com dois pares de cambitos, onde se dispunham as canas, até preencher todo o espaço e completavam a carga, com dois feixes que se cruzavam nas pontas dianteiras, esses eram amarrados com o próprio olho da cana ou folhagem. Uma carga mula regulava cerca de 100 a 150 quilogramas por vez. E assim, eram transportadas ao engenho, sendo despejadas em torno da moenda.
No período da safra, o engenho iniciava suas atividades, a partir das quatro horas da manhã. Um dos primeiros a chegar para o trabalho era o “fornalheiro”, aquele que alimenta a boca da fornalha com o bagaço seco para queima; propiciando a temperatura ideal para o aquecimento da caldeira e o cozimento do caldo extraído da cana. Cortando e puxando o bagaço amontoado com a unha, (peça de ferro curvada presa em um sarrafo de madeira) e puxando-o para a entrada da fornalha, podendo assim, empurrar com o gancho forno adentro.
Em torno do engenho, havia uma grande área de terra socada, chamada de “bagaceira”. Segundo o novo dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda, bagaceira é o ambiente dos engenhos de cana de açúcar pagina 218.
Era na bagaceira onde se espalhava o bagaço da cana, levados da moenda em bangüês, para secagem por via natural; nesse ambiente os cabroeiras utilizavam-se de rodo e ganchos para o manejo dos detritos. Geralmente trabalhavam sem camisas, com as costas expostas ao sol, pele curtida, escura e suada. Podia ver-se de longe o reflexo produzido pelo sol, ao incidir sobre seus corpos em movimento. Espalhavam o bagaço em toda dimensão da área utilizada para este serviço. Após a secagem o bagaço era enfileirado, e dois cabroiras, na ponta da fileira, arrastavam o bangüê, normalmente de cima para baixo, até esse ficar completamente cheio, em seguida era transportado para a casa de bagaço ou boca da fornalha. Bangüê é uma padiola de cipós trançados, na qual se leva à bagaceira o bagaço verde da moenda, segundo o Mini Aurélio 6ª edição. Esse era utilizado como combustível, para gerar a energia térmica que movimentava todo o engenho.
É na fornalha que ocorria a queima do bagaço, que produz o calor ou energia térmica, para o aquecimento da caldeira, que gera o vapor, esse produz a energia mecânica que serve para mover a moenda, onde é triturada a cana. Com esse processo, são fornecidos o caldo e o bagaço, ainda como produtos primários. Essa queima serve também como fonte de energia térmica, para o aquecimento dos tachos, onde se processa o mel e a rapadura que são alguns dos produtos secundários da cana de açúcar.
A moenda era movimentada pelo vapor produzido pela caldeira, e comportava dois homens, para supri-la com a cana existente no paiol; esses homens eram conhecidos como “cevadores”, lembro bem de dois desses, um de codinome Sessenta (por ter nascido em 1960) e o outro Jacaré, desconheço o porquê desse apelido. Do outro lado da moenda, havia mais um homem que apanhava o bagaço, virando-o para uma segunda passagem pelos rolos compressores, de extração do caldo da cana e secagem do bagaço. Quem fazia esse trabalho, com o bagaço de primeira virada era chamado de virador e, no Engenho Canástula, o responsável por essa função, por muitos anos, atendia pelo apelido de Pelado.
O caldo gerado pela moenda corria por uma canaleta, indo até um tanque, geralmente feito de madeira, denominado “parol”; quando o mesmo se encontrava “apejado” (cheio), abria-se um orifício no fundo do tanque, que costumava ser tapado, com uma rolha feita de madeira, bastante comprida, para alcançar o orifício, por onde deixava passar o caldo, através de uma bica que ia do “parol”, até o tacho maior, denominado recebedeira e, era nesse recipiente que a garapa recebia o primeiro aquecimento, assim como, os primeiros tratamentos de limpeza; em prosseguimento era repassado para o segundo tacho de nome caldeira, onde recebia um tratamento maior; gerando uma densa nata produzida pela fervura e a cal nele adicionada, a essa nata chamava-se “esborro”, que era separada e lançada em uma bica, que ia dar em uma cuba, de onde era repassado a outras, para a sua transformação em vinhoto.
Já quase limpo, o caldo era transferido para um terceiro tacho, denominado calderote, nesse recipiente recebia o tratamento da cal e da mamona, (a cal serve para retirar as impurezas e a mamona para açucarar o melado); era nesse tacho que começava o engrossamento da garapa, transformando-a em quase mel e, por ultimo, era repassada ao tacho chamado boca, onde o aquecimento era maior e, transformava por completo o caldo em melaço, ou seja, ganhava esse o “apuro”, a consistência que o melado precisava ter, para se transformar em rapadura. Era desse recipiente que era passado para um dos três tachos denominados resfriadeiras. Todo esse movimento era feito pelo mestre de engenho e seu ajudante, por meio de uma passadeira, que era uma cuia de cabaça, presa na ponta de uma vara de madeira, fixada com arame ou barbante do sisal.
O mel era posto numa resfriadeira, e mexido intensamente, por uma ou duas pessoas, que eram conhecidas como banqueiros. Esses traçavam o melaço, de um lado para o outro, até transformá-lo em uma massa pastosa. Esse traçado era feito com uma pá, fabricada da madeira de uma arvore frutífera, denominada de jenipapo, e, só podia ser dessa madeira. Após essa etapa, o taxo era raspado, com uma chapa de ferro laminada, atrelada a um sarrafo de madeira, preparado exclusivamente para raspagem. Quando a massa ficava pronta, imediatamente era colocada com uma palheta, em uma peça denominada de caixeta, ambas fabricadas da mesma madeira do jenipapo, com 10 cavidades ou formas em cada peça, medindo aproximadamente 8cm de largura por 14cm de comprimento, e logo depois de cheias eram conduzidas para o “tendal”, (espécie de mesa com prateleiras para depósito das caxetas), onde ocorre o resfriamento.
Após o resfriamento, as peças eram retiradas, e com cada uma das peças, bate-se sobre o tendal, desinformando a rapadura, que são agrupadas em montes de 10 unidades, para facilitar a arrumação do embalador, (o homem que embalava a rapadura), adicionando até 100 unidades no “garajau”, invólucro feito de finas varetas, embiras e a folhagem ressequida da cana, formando uma espécie de mala.
Nessas embalagens, a rapadura era empilhada em um depósito, para comercialização por até seis meses. O comercio era feito através dos matutos, homens que possuíam tropa de mulas e, que vinham de diversos lugares, em busca desse produto, que era muito apreciado por sertanejos, brejeiros e por todo o nordestino que se prezava.
Os tropeiros carregavam sua tropa, com dois “garajau” em cada mula, e tangiam durante dias, para as mais diversas localidades daquela região. Conheci alguns desses tropeiros, de cujos nomes, ainda me lembram bem: Manuel de Gós, João Chico, seu Moisés... Todos viviam do comercio da rapadura, entre o Brejo e o agreste. Eles também comercializavam a cachaça, “Crista de Galo”, que era fabricada em alambique de cobre ou de madeira, utilizando o vapor produzido pela caldeira, ou através do aquecimento pela queima do bagaço da cana, diretamente na fornalha do alambique.
A cachaça é uma bebida alcoólica, produzida naquela época, apenas a partir do vinhoto extraído do caldo da cana, via decantação. Ela era elaborada, pelo resfriamento das serpentinas, que transportam o vapor do vinhoto em fervura, produzindo-se dessa forma, as mais finas aguardentes do nordeste brasileiro.
Conheci bem o ambiente do engenho. E no Engenho Canástula ainda recorda-me aquela senhora, que trajava quase sempre vestidos estampados, tinha um olhar firme, do tipo que vê a gente por dentro, um olhar profundo e indagador, como se nos perguntasse: aonde vais? O que queres aqui? De onde vens?
Hora sentada, hora andando de uma ponta a outra do alpendre da casa grande, de onde tinha uma visão privilegiada de toda a bagaceira, do prédio onde funcionava o engenho, e de onde podia com sua voz muito forte, chamar os cabroeiras sempre que precisasse. A eles dava as ordens a serem cumpridas, e também, mandava recados para os filhos e o marido que trabalhava nas dependências do engenho.
Eram muitas as terras onde estava fincado o engenho. Terras entrecortadas pelo Rio Camará, estendiam-se a três municípios de pequenas cidades, encravadas nas abas da serra da Borborema, no brejo paraibano.
Em época de safra, o engenho funcionava de segunda a segunda e, à medida que, a cana de açúcar se escasseava, parava aos domingos, possibilitando com isso, a ida de seus trabalhadores à feira, aonde podiam adquirir por um melhor preço, certos refrigérios. Nem todos podiam fazer tal extravagância; e quando não era possível e quase sempre não era, por falta de dinheiro, compravam nas bodegas, espécies de mercearias, mantidas pelo senhor de engenho ou por pequenos proprietários na redondeza. Esse era o lugar onde podiam comprar fiado, para pagar quando ganhassem um pouco mais, a custa de muito suor e cansaço, na labuta do dia-a-dia.
Os produtos extraídos da cana de açúcar: a cachaça, e a rapadura eram comercializadas e consumidas, na região do brejo e do agreste, dos diversos estados do nordeste brasileiro. Às vezes em época de fartura, chegava ao povo sertanejo, (homens que vivem no alto sertão), que em tropas, vinham de longe em lombo de mulas, os conhecidos tropeiros, em busca desses produtos.
Morar nas terras de um engenho, não era coisa muito fácil. O cabroeira que não cumprisse suas tarefas, que fizesse corpo mole ou mexesse com as filhas dos outros moradores do engenho; era punido com muita severidade pelo patrão ou pela patroa; que juntavam uns três homens de sua confiança e mandava surrar o caboclo sem dó, nem piedade. Depois, mandava chamar a policia para trancafiar o infeliz no xadrez da delegacia mais próxima. Assim todos tinham de andar na linha e ser respeitosos; essa era a condição básica, para quem quisesse morar nas terras de um engenho.
No geral a vivencia no Engenho Canástula sempre transcorrera pacatamente, sem os entreveros de costumes nesses lugares, provocados pela farta distribuição da cachaça e tira teima de uns para com os outros.
Mas o verdadeiro cabroeira era um homem destemido, corajoso e de bom caráter; trabalhador e cumpridor dos seus afazeres. Nunca se opunha as ordens do seu patrão e cumpria a risca o que lhe era ditado.
Eles sempre encontravam nos engenhos, o acolhimento para si e sua família; casa para morar, um pequeno pedaço de terra para plantação de subsistência e trabalho na lavoura, com o qual, ganhava o sustento para sua prole e, nesse engenho em especial, a ajuda dos patrões no que se fizesse necessário. O salário era pequeno, mas ninguém passava fome, todos tinham o alimento garantido, embora o ganho não fosse grande coisa, dava para suprir as necessidades básicas da família, desde que o cabroeira, não fosse dominado pelo vicio da cachaça.
Conheci moradores de engenhos, que conseguiram encaminhar os seus filhos nos estudos, e esses, se formarem como técnico agrícola ou agrônomos. Vi esses filhos, ao arranjarem bons empregos, tirarem seus pais, das terras dos engenhos, comprando para eles, uma boa gleba de terra, tornando-se a si, e aos seus pais, proprietários independentes.
Mas também conheci trabalhadores, que perderam seus braços, mãos, dedos, em acidentes nas moendas de cana de açúcar e motores de transformação do sisal em fibras, sem que jamais fossem indenizados, e em pouco tempo, sem utilidades para o serviço eram mandados embora das terras. Ficavam a perambular de um canto para outro e terminavam por morrer a mingua.
Apesar desses acontecimentos estúpidos, mas esporádicos, vivia-se em uma época, que não se via a violência física e truculenta dos dias atuais. O homem vivia nas pequenas cidades, nos engenhos, nas usinas, nas fazendas e pequenas propriedades dessa região, em perfeita harmonia consigo mesmo e com a natureza. Compartilhavam-se das festas e de todo tipo de eventos, que por ventura ocorressem nos lugarejos circunvizinhos.
Por volta de 1978 as entidades sindicais, começaram a dar a luz de “suas desgracenças”, nas regiões dos engenhos e usinas açucareiras, fazendo de cada trabalhador rural um sócio, e com isso, criando dificuldades aos senhores de engenhos, usineiros, fazendeiros e até aos pequenos proprietários. O governo não havia preparado a classe patronal do meio ruralista, para a compreensão dessas mudanças. Os sindicatos passaram a exigir que a cada trabalhador rural, fosse pago o salário mínimo vigente à época. Poucos eram aqueles que tinham condições de arcar com essa despesa. A maioria dos engenhos de cana de açúcar, tinha mais moradores do que o necessário, para tocar os trabalhos do engenho. Quando resolveram dispensar os cabroeiras excedentes, viram-se obrigados a arcar com indenizações que não podiam pagar. Muitos senhores de engenhos cederam partes de suas terras, para antigos moradores em forma de pagamento indenizatórios.
O engenho canástula, chegou a ter 95 famílias, morando em suas terras e este foi um dos que perderam glebas de terras para seus moradores mais antigos.
O tempo ia passando, e a cada dia, mais complicado ficava lidar nos engenhos. Os proprietários não queriam mais ceder as suas terras, para os trabalhadores morarem, em virtude da dureza da Lei Trabalhista e Sindicatos que operavam em favor do trabalhador rural. Por outro lado, a concessão de verbas pelos governos, para compra de implementos e maquinários agrícolas, tornava-se a cada dia mais difícil. E assim, a substituição da mão de obra humana por máquinas, ficava cada dia mais longe e os senhores de engenhos, sem a necessária mão de obra, para o cultivo da cana, iam perdendo terreno para a pecuária.
Muitos engenhos começaram a falir. As pequenas cidades começaram a inchar do ponto de vista demográfico. Suas periferias a alargarem-se, com as construções de barracos, casebres, que até essa época, apenas existiam nas periferias das grandes cidades. O cabroeira que até pouco tempo tivera onde morar e como se alimentar, passou a viver nessas zonas periféricas das cidades, como mendigo; trabalhando quando alguém lhe oferecia a paga por um dia de serviço. Via seus filhos chorarem de fome e não havia o que lhes dar para comer. Daí surge o homem marginalizado, aquele que sai para roubar o outro, para apanhar no roçado de quem tinha aonde plantar, o alimento para os seus filhos.
Foi assim que as cadeias, das pequenas cidades foram construídas, e logo, ficaram superlotadas de homens à margem; cidades onde antes quando muito, tinha uma sala na delegacia, onde se punham os desordeiros, indicados pelos senhores de engenho; passaram a ter batalhões de policiais e prisões.
O governo e as entidades sindicais têm suas parcelas de culpas, nessa desastrosa mudança estrutural do homem no campo. Do desajuste social, produzido pela má orientação aos ruralistas, por não saberem, governos e sindicatos, conduzirem as modificações de maneira pacífica e gradual, nesse período de mudança entre patrões e empregados do meio rural.
Aqueles que eram cabroeiras, agora passavam a ser marginais, ladrões, bandidos. E quem lhes facultou esses novos títulos? Quem os pôs por trás das grades? Por que os Sindicatos não os defendiam mais? Ora! O interesse maior, agora era outro. As entidades sindicais eram vinculadas aos partidos políticos, e a esses não interessavam o apoio patronal, que nesse momento estavam desbaratados, mas queriam sim, o apoio das massas, por vias de benesses de momentos, como o novo salário ao camponês, indenizações trabalhistas e todo o mais, que se fizessem necessários para a consecução de escusos objetivos políticos.
E o que restou de tudo isso? Hoje o que restou, foi a lembrança de uma época em que podíamos dormir, com as portas das casas escancaradas, sem o medo estampados nas faces, dos brejeiros e sertanejos dessa vasta região nordestina.
Hoje não mais existem os cabroeiras, assim como, os engenhos de cana de açúcar; na maioria, transformados em engenhos de “fogo morto”, como é o caso do “Engenho Canástula”, ou sejam, passaram da lavoura da cana de açúcar, para a pastagem de gados, (poucos gados), e assim os senhores de engenhos, passaram através dos filhos, para pequenos proprietários, cultivando a lavoura de subsistência, e o verdadeiro cabroeira, desapareceu, sumiu... Se um símbolo dessa época hoje é fogo morto, o cabroeira é um morto vivo, se é que ainda exista.
Há evolução que o próprio homem faz e que destrói o que a natureza fez: o homem na sua originalidade.
Rio, 24 de fevereiro de 2009
Feitosa dos Santos