Dívida com o passado
Bem mais do que outros povos ocidentais, nós, brasileiros, temos pouca relação com o passado. Gerações a fio cresceram (e ainda crescem) ouvindo que o Brasil é o país do futuro. Aparentemente inofensiva, esta máxima termina incutindo em cada um a falsa impressão de que o novo é sempre melhor, em todos os sentidos.
Prova disso é a ínfima relação que temos – individual e coletivamente – com o tempo que se foi, com os que se foram. São raras as famílias que têm interesse em pesquisar suas árvores genealógicas. Em conseqüência disto bem poucas pessoas têm a oportunidade de conhecer as próprias origens – tão importantes nas trilhas que levam ao autoconhecimento, a informações preciosas sobre os mais próximos.
Quanto ao nosso envolvimento com a história do país, basta analisarmos os inúmeros casos de destruição ou abandono de documentos e bens móveis e imóveis. Até mesmo as cidades turísticas, de reconhecido valor histórico, como Ouro Preto e Mariana, foram descaracterizadas ao longo do tempo.
Exemplo desse descaso é o que está ocorrendo em Anchieta, município capixaba que tem nas belas praias e no Santuário do Beato Padre Anchieta os seus principais apelos turísticos. Há cerca de sete anos foi “descoberto” numa área pertencente à mineradora Samarco um sítio arqueológico com ruínas jesuítas, datado da segunda metade do século 16. Ainda um enigma para os próprios pesquisadores que já foram ao local, as chamadas Ruínas do Rio Salinas possuem mais de trinta colunas redondas e quadradas, numa construção de pedra e argamassa, com uma fundação profunda que mal foi investigada. Supõe-se que tenha sido uma antiga salina clandestina, próxima a um cemitério indígena.
Numa das minhas idas a Castelhanos (balneário pertencente a Anchieta) estive nas ruínas, num passeio de barco pelas águas calmas dos rios Benevente e Salinas – com direito a passar por manguezais e por uma área de proteção ambiental, onde podem ser vistas milhares de garças. Sem dúvida, um belíssimo espetáculo da natureza! O pescador que servia de guia em seu próprio barco contou que, assim que foram surgindo histórias sobre possíveis tesouros escondidos nas ruínas, o local começou a ser visitado por aventureiros e vândalos. Houve quem cavasse buracos, e até mesmo um pescador chegou ao cúmulo de quebrar duas colunas, alegando ter sonhado que havia ouro dentro delas. Sem contar uma imensa jaqueira antiga que foi cortada e queimada simplesmente porque alguém ouviu a história de que os jesuítas costumavam enterrar seus tesouros próximos às árvores mais frondosas.
Embora não seja uma regra, de uma forma geral o povo e os políticos brasileiros lidam com o passado como esses aventureiros lidam com as ruínas jesuítas de Anchieta. Nossos idosos, ao contrário dos que vivem em certos países do Oriente, são relegados a último plano ou tratados como fardos para o Estado e para suas próprias famílias. Como ser uma nação do futuro tratando seus filhos mais sábios deste jeito? Simplesmente impossível!
Temos, enquanto indivíduos e entes coletivos, uma dívida enorme com o passado. Uma dívida social, uma dívida moral, uma dívida afetiva. Peço a Deus todos os dias sabedoria e discernimento para encontrar pelo menos em mim o fio condutor que me leve aos meus antepassados, aos antepassados de todos os índios, brancos, negros e demais raças que deram ao Brasil a sua essência. Sem esta identidade somos apenas andarilhos com amnésia e sem rumo.