Muito além do espelho
Há algum tempo eu ensaio uma crônica para comentar o tema que gira em torno de duas músicas do vasto repertório do saudoso sambista João Nogueira, que se foi em meados de 2000. A sugestão partiu de um leitor declarado dos meus textos – alguém de muita sensibilidade e extremo bom gosto musical, que realiza no Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Viçosa (UFV) um trabalho de corpo e alma com seus alunos, assim como faz com seus próprios filhos.
Numa rápida conversa que tivemos na porta de um banco, mencionamos sobre a fantástica missão que todo ser humano tem de servir de espelho para alguém. Algo que acontece com muita força nas relações entre pais e filhos. Exatamente o que contam João Nogueira e Paulo César Pinheiro nos sambas “Espelho” e “Além do Espelho”.
Em “Espelho” os compositores se colocam na figura do filho que tem no pai uma referência decisiva de vida. Aquele que foi herói, conselheiro, modelo de felicidade. Eles contam sobre a dor de perdê-lo para a morte, de como isso significa uma perda de rumo, de prumo. Arrematam, no entanto, com a superação e com a constatação de que um pai que morre, na verdade nunca morre na lembrança, no coração. “Eh, vida voa / Vai no tempo, vai / Ai, mas que saudade! / Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade / E orgulho de seu filho ser igual seu pai”.
Tempos depois João e Paulo César chegam com “Além do Espelho”, agora na condição de pai – do que precisa estar pronto para servir de espelho. “Quando eu olho o meu olho além do espelho / Tem alguém que me olha e não sou eu / Vive dentro do meu olho vermelho / É o olhar de meu pai que já morreu / O meu olho parece um aparelho / De quem sempre me olhou e protegeu / Como agora meu olho dá conselho / Quando eu olho no olhar de um filho meu”.
Os versos refletem a convicção de quem se espelhou e agora sabe que chegou a vez de ser espelho. Triste daquele que amadurece sem consciência dessa responsabilidade. Todos têm a obrigação de superar seus antepassados em tudo! Esta deveria ser a lógica a pautar a evolução da humanidade. Já que sabemos ser isso uma utopia, ao menos os pais deveriam se sentir impelidos a serem os melhores espelhos para seus filhos.
É no que acreditam João Nogueira e Paulo César Pinheiro quando escrevem:“Sempre que um filho meu me dá um beijo / Sei que o amor de meu pai não se perdeu / Só de ver seu olhar sei seu desejo / Assim como meu pai sabia o meu / Mas meu pai foi-se embora no cortejo / E eu no espelho chorei porque doeu / Só que olhando meu filho agora eu vejo / Ele é o espelho do espelho que sou eu”.
Mesmo sem ainda ter filho para em mim se espelhar, tenho responsabilidade parecida como padrinho de três, tio oficial de três e de consideração de outros tantos e como professor e ex-professor de várias dezenas. Mais do que isso, tenho a dificílima tarefa de superar meu pai, que partiu deixando a maior das heranças: a de ter sido um ser humano de primeira grandeza. Agradeço a Deus por ter me dado espelho tão límpido.
“Toda imagem no espelho refletida / Tem mil faces que o tempo ali prendeu / Todos têm qualquer coisa repetida / Um pedaço de quem nos concebeu / A missão de meu pai já foi cumprida / Vou cumprir a missão que Deus me deu / Se meu pai foi o espelho em minha vida / Quero ser pro meu filho espelho seu”. O que dizer depois disso?