A MALDADE E O CÂNCER

Publiquei este texto há alguns anos, mas, por constituir-se em evento marcante e adequado ao momento em que todos vivemos, vou reproduzi-lo. Sim, concordo, ninguém é santo, mas quando se tem uma profissão e a responsabilidade de defender regras e princípios, o bicho pega. Ademais, a história reflete a significação de um ideal, de um compromisso, especialmente nos primórdios da carreira. O Câncer é uma chaga para a qual a Ciência ainda não encontrou soluções cabais, mas é mal que, em alguns poucos casos, pode derivar da alma, da amargura, do recalque, da maldade pura e simples. Enfim, trata-se de caso de um jovem advogado recém-formado que trabalhava em grande e prestigiosa instituição financeira privada desta Capital, em meados dos anos setenta. Numa ocasião, determinaram-lhe que viajasse a importante município do Estado do Paraná. A intenção era convencer o Prefeito de uma cidade de porte a encaminhar projeto de lei à Câmara de Vereadores para que contraísse empréstimo com a instituição de crédito, visando à compra de equipamento rodoviário pesado de uma empresa também de Porto Alegre, por ele muito pretendida. O Prefeito julgava-se legitimado a praticar todos os atos, sem concurso do Legislativo, muito ao gosto do centralismo político-administrativo vigorante então, de hipertrofia do Poder Executivo e muito pouco democracia. Claro que ele não contava com maioria na Câmara. Com o advogado - aliás, o único empregado celetista na área jurídica da instituição - seguira alto gerente da empresa vendedora, que passou a viagem até o jantar, com ênfase no jantar, desdobrando-se para convencer o causídico a encontrar qualquer modo que viabilizasse a operação altamente lucrativa para as partes. O alcaide, porém, estava absolutamente convencido e irredutível: a Câmara não aprovaria nenhuma lei, por motivos políticos, mas ele resolveria a situação por decreto, bastaria a concordância da assessoria jurídica de instituição financiadora, visto que o parecer jurídico de sua própria assessoria estava assegurado. Não restou alternativa ao advogado em questão senão condenar juridicamente o negócio, numa grande reunião com secretários, procuradores e assessores municipais, o alcaide e o representante do vendedor, ansiosos, e, ao final, desolados. Grandes interesses econômicos estavam certamente em jogo. O causídico sentiu-se um tanto constrangido, mas foi irredutível e absolutamente fiel a suas convicções técnicas, como não poderia deixar de ser. Afinal, o Município daria, ainda, em caução, quotas dos Fundos de Participação e, sem lei municipal específica, nem pensar, por melhor que fosse eventualmente o negócio. A palavra do advogado, no caso, seria a palavra final, ainda que voz solitária. Grande contrariedade.

De regresso ao hotel, enquanto pagavam a conta da hospedagem, o tal homem de vendas falou de inopino ao causídico "Vou logo ali, ao banheiro, dá uma olhada em minha leva-tudo", e saiu.

Na volta a Porto Alegre, no primeiro dia trabalho, o advogado foi chamado por um diretor de sua empresa: "Olha, Fulano de Tal acabou de ligar e disse que desapareceu importância apreciável em dinheiro de sua bolsa, que ficara a teus cuidados. Sabes de alguma coisa?". Perplexo, o jovem explicou que até, quem sabe, poderia ter ficado desatento por alguns segundos, já que estava a acertar a própria conta, mas nada percebera de anormal. Insólita situação, especialmente por não ser guardião de coisas ou pessoas. A explicação foi transmitida ao queixoso, que insistiu em suas reclamações. Novamente foi chamado o advogado, agora perante dois diretores. Pediram, então, que ele próprio telefonasse e se entendesse diretamente com o gerente de vendas insatisfeito. O jovem concordou prontamente, procedeu a ligação telefônica e foi enfático ao negar conhecimento de qualquer anomalia e que o queixoso lá voltasse e reclamasse diretamente ao hotel ou que procurasse melhor nos próprios bolsos, e comunicou a seus diretores a sua postura definitiva. A conversa foi bastante desagradável e o episódio esgotou-se por aí mesmo, de modo ríspido. Os Diretores da instituição de crédito compreenderam e deram o assunto por encerrado. Poucos anos depois, esse mesmo gerente, na casa dos quarenta e poucos anos, morreu de um câncer voraz e fulminante. Enfim, o negócio não se realizou, é claro, e o advogado continuou firme em seu emprego, prestigiado.

Deve ser realmente chocante defrontar-se com a maldade em estado puro, com seus arroubos e ardis - mais deletéria que na literatura ou em novelas de televisão, onde a ficção parece, às vezes, impossível de materializar-se. Existem situações em que a vida não perdoa e cobra um preço bem alto aos grandes desvios de caráter ou de humanidade.

José Pedro Mattos Conceição
Enviado por José Pedro Mattos Conceição em 22/12/2008
Reeditado em 22/03/2019
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