A tese da invisibilidade pública
“Não é ninguém, é o padeiro!”. Esta é a frase que norteia a crônica “O Padeiro”, escrita pelo capixaba Rubem Braga em 1956. Considerado um dos cronistas mais completos do Brasil, ele sabia abordar questões essenciais, profundas, em meio às mais simples passagens cotidianas.
“Enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! (...) Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e, muitas vezes, saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como o pão saído do forno.”
Braga, em sua história, dizia ao padeiro que o seu trabalho era muito importante, tanto ou mais do que o seu, como jornalista. Mas o “ninguém” assumido pelo entregador de pães é uma condição entranhada nas relações sociais em praticamente todas as nações do mundo. Há muitas profissões que, mesmo sendo fundamentais, são relegadas aos últimos planos nas escalas de valores sociais e econômicos.
O tema virou tese acadêmica de um psicólogo social da USP (Universidade de São Paulo). Tendo como mote a teoria da invisibilidade pública, Fernando Braga da Costa trabalhou oito anos como gari, varrendo ruas do campus universitário onde fez graduação e mestrado.
Ele contou que sua tese nasceu ainda na graduação, a partir da sugestão de um professor, que mais tarde viria a ser seu orientador no mestrado. Ele sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação, que se engajassem numa tarefa proletária, uma forma de atividade profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmica. Em outras palavras, as profissões das classes pobres.
Fernando Braga, para concluir sua tese, trabalhou meio período como gari, sem receber o salário de 400 reais como os colegas de vassoura, embora usando o mesmo uniforme e fazendo o mesmo serviço deles. O pesquisador declarou em entrevista ter tido a maior lição de sua vida: “comprovei que, em geral, as pessoas enxergam apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse critério, vira mera sombra social. Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um sopro de vida, um sinal da própria existência.”
Os uniformes (nunca os suportei nem no tempo de escola!) podem enquadrar as pessoas exatamente naquilo que se esperam delas. Mesmo, muitas vezes, sendo de cores berrantes, como o dos garis da USP, certos uniformes deixam invisível o que, de fato, deveria nos tornar humanos.
Ainda em sua tese, o psicólogo disse ter sentido na pele o que é ser tratado como um objeto, um nada. “Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim, mas não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste ou em um orelhão”, contou o Braga pesquisador.
Já o Braga cronista não poderia ter dado outro desfecho ao seu texto: “Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; ‘não é ninguém, é o padeiro!’ E assobiava pelas escadas”.
Visibilidades e invisibilidades públicas à parte, resta apenas a pergunta de difícil resposta: em que mesmo um ser humano pode se julgar melhor do que outro?