O INTERVALO

Era uma tarde desconhecidamente certa. Os sapatos resumiam distância sobre a meia luz do quarto que hoje sou. Os alunos esperavam prontamente. Era a primeira tarde em que a vida se dissolve em fluido á luz do meio-dia. Meu habitual receio era da espera tão subjetiva, mesmo naqueles os quais retornam comigo, pois há sempre uma ponta de mistério entre uma lacuna e outra. Saio de casa convencido, porque creio que repetirei a rota na qual se me mantém no presente. A rota é o esquecimento essencial disfarçado em sobriedade acadêmica.

Mais um pouco e a turma ali. Alguns novos alunos sentados na sua forma de silêncio sem mito. Essa brevidade é que os definem verdadeiramente como são. Só depois é que se deslocam qual uma embriaguês, uma pergunta abandonada. E afinal minhas palavras iniciais tão flagradas e inéditas a mim mesmo. Nunca soube anotar, ensaiar, persuadir. Para mim tudo está nos textos, essa forma espirituosa de dizer olá ou adeus sem nenhuma ocorrência criminal. Apenas uma cisma que, em sala, é sonho concebido para ser só sonho.

De repente, uma voz – até então não impressa – cortava meu monólogo. Era um balbucio de resposta a uma indagação minha que não lembro, mas sei que me reaproximava das coisas intencionais. Os dias se passaram e outras vozes se esqueciam mais e mais de seu estágio vespertino lançado no olhar de soslaio, mas sempre evocativo de quem procura na disciplina a materialização dos sobressaltos e descobertas. O tempo passa, logo, o espaço mais que demarcado era apego e lhos ficou pequeno como fica o espaço que de nos apegar delimitamo-nos. As cadeiras agora eram apenas uma circunstância, não uma causa; Uma circunstância que de perfeita nem se percebe mais.

Machado de Assis já dizia que o menino é o pai do homem. Parafraseando, digo que o aluno é a veia do professor. Vivo mais quando a intuição é vilã das aulas menos medíocres. Mas Machado talvez quisesse dizer algo menos tátil. Quem sabe a noção de que o homem vive em função do passado (transcrito na figura do menino como determinante para o adulto) talvez em busca de recuperá-lo. Há tantas formas de dizer e de ler como existem muitas maneiras de ver os mesmos alunos; ou outros, da mesma forma. O que importa é a busca, com ou sem conquista, pois quem busca está sempre certo, ainda que erre.

Alunos e alunos. Os que são aspas na fotografia em preto e branco de uma Walerya, um Gleydson, um Íkaro; os que se permitem exclamação na esteira de um Max, um Lírio; uma Thays, um Felipe; aqueles que concebem os limites dos parênteses de um Furtado, um Luis, um Almir; os que compreendem a fronteira da vírgula de um Vladimir, um Elder, um Wallison; outros que substanciam os dois pontos de uma Leia, uma Sara, uma Darley; os que mitificam a fuga nas reticências de uma Adrielly, uma Karen, uma Iarla; mas também os que se consagraram no ponto contínuo de uma Adaylane, um Robson, um Raniel, uma Paula. Aquele e aquela tornam o fazer do quadro acrílico o diálogo com o mais íntimo de mim. No fundo, todos dignos da minha tentativa de magistério, uma ilha contingente a me armar nítido, continuado, humano.

Mas minha memória para capturar nomes sempre fez de mim o educador que colhe dos olhares acidentais o que é coincidência e necessidade. E lá estava outra vez o grupo de jovens com seus olhares expectantes, imperativos e, não raro, circunscritos. As mãos, que repousaram por debaixo da mesa, perderam a umidade, a certeza de que tudo é didático. Demorei fixar alguns nomes. Quanto a esta demora, eu ganhava a convicção de que havia mais que nomes, visto que alguns se fizeram parte da aula que talvez eu nunca saiba ser. No fundo, meus alunos são só eles; eu, o orientador que quando fala em bons textos deixa escapar um momento que nunca se desnudaria em nenhuma boa escrita. Salvo os ganchos das entrelinhas a me figurar, pretensioso, não mais que um aluno.

Mas agora o ano letivo acabou. Não haverá outro terceiro ano até que me sinta ordenado a escrever de novo (escrever acrescenta outro mistério?). Os companheiros das sextas – feiras deixarão seus lugares nas cadeiras; eu deixar-lhes-ei, quem sabe, meu vulto assomar à ausência da escola até então um somewhere over the rainbow à Norah Jones. Cada aluno de um lado da avenida. Um mundo novo anunciado pelos fios de novas inquietações, novo corpo, novos gurus. Mas quem sabe a espera de tudo isso ser dito sem a gratuita convulsão inesperada, por um instante, transferindo-me para um lugarzinho daqueles que não me precisem de reencarnação.

G Monteiro
Enviado por G Monteiro em 25/11/2008
Código do texto: T1301881