O paraíso perdido
1.
O meu coração pequeno rolava sobre os grãos de café no terreiro. A infância cresce com a beleza das coisas. O meu pai gritava mais alto que o tempo. As espigas da infância estralam no meu coração.
2.
Eu dava cambalhotas no pasto dos bezerros sob o sol amigo da manhãzinha orvalhada. Os meus irmãos eram cachorros ao meu lado, lambendo a paisagem com os olhos e a língua.
O leite espumava das tetas gordas das vacas para a caneca de lata nas mãos do meu pai. Nós éramos meninos e voávamos sem cabresto, com espuma de leite caindo do canto da boca. Montávamos a cavalo nos bezerros pequenos, caíamos sobre os montes de estrume verdolengo.
Era a vida que nos lambuzava as calças curtas. Nós partimos para a vida com o corpo lambuzado: ostento marcas vermelhas que não se apagam mais, daquele orvalho que conhecemos com os bezerros.
3.
Sou o menino no terreiro de café, sou o menino com um cão ao lado. Escrevo com orvalho e lágrimas da infância nos olhos e na alma. E sobrevôo o dia que se põe no rio eterno como um deus vermelho.
4.
O menino está sentado num grande tronco de árvore, à beira de um alto barranco. O tronco é roliço, grosso, muito maior do que o menino; é liso, escorregadio, poderia derrubá-lo no abismo.
O menino encantado olha para baixo; é um fascínio, o mundo tão lá no fundo.
Um córrego corre, gorgolejando entre as pedras; brilha ao sol, a água de metal, de luz. O menino quer mergulhar nessa água, que mergulha em seus olhos; e flutua nessa luz, sentado no grande tronco, pairando no espaço.
5.
O menino grudado na terra vermelha, nu, ao sol. Brotam da terra gotas d’água, vermelhas, da comunhão com o sangue da terra, e brilhantes, cada uma com o menino dentro. O menino brota do barranco, manchado com os respingos da terra molhada.
O barranco domina, é a paisagem, com as gotas d’água porejando. Algum verde, de algum pouco capim, e o céu azul acima.
Tudo é a terra vermelha e o menino grudado, com um ar feliz. Os borrifos de água, cada vez maiores, brotam da terra, querem jorrar, inundar o mundo de luz vermelha.
6.
O café verde e vermelho rebrilha no terreiro.
O pai vai e vem com o largo rodo revirando os grãos de café.
Os olhos do menino giram ao sol. Regiram. É uma festa: o pai forte, enorme, as pernas longas, as largas passadas entre os grãos de café, que saltam no ar, ao sol.
O menino é muito pequeno, está sentado num canto do terreiro, tem um estilingue na mão direita e um cacho de mamonas na esquerda; um embornal de pano verde pende do ombro.
À direita está a tulha de café; à esquerda, abaixo, a casa e o córrego; atrás do menino, um bezerro pastando, e, à frente, o pai e o sol, os dois senhores daquele vasto mundo livre.
7.
Tenho uma cicatriz na minha perna esquerda, um bom palmo de minha mão de homem, de dedos compridos, da metade da perna abaixo do joelho, até alguns centímetros acima.
O pasto era belo, sob o sol; era o meu espaço, onde eu era livre, onde corria e voava sem peias; eu era livre como os bezerros, os potros, os cavalos. Eu galopava como um cavalo selvagem no coração da vida.
Mas aí vieram as vacas, veio o touro soltando fogo pelas ventas; e eu me tornei um potrinho trêmulo, recém-nascido, transido de medo; e eu tentava correr, trançando as perninhas tontas; e a cerca de arame farpado era intransponível, os fios de arame esticados, as farpas pontudas.
E o touro escarvando o chão, bufando, eu sentindo o bafo quente na minha carinha de bebê chorando; eu me arremessei por entre as farpas brilhantes, num gesto desesperado, louco; e a minha perna ficou dependurada, rasgando-se, mais e mais, sangrando, sob as ventas do touro ali estacado, imóvel.
O sangue vermelho, o sol vermelho, o touro de fogo, a dor de fogo; tudo o tempo consome; resta a cicatriz, galardão.
8.
Os tijolos gastos do chão da cozinha. O picumã nas telhas pretas como morceguinhos dependurados. O quarto dos arreios. Uma porta que não se abria nunca. As réstias de sol entre as réstias de alho.
O pai fazendo vassouras à noite. O lampião de querosene, a lamparina, as sombras esvoaçantes. O menino acompanha a dança das sombras subindo pela parede até as vigas, os caibros do telhado onde uma raposa fez seu ninho e pariu quatro raposinhos. O menino tem dó dos raposinhos mortos e aperta a barriga, a sopa de mandioca fumegando no fogão a lenha.
O menino aperta a barriga porque está com fome. O menino mais de cinqüenta anos depois está com fome dessas coisas pequenas, dessas miudezas de nada. Mais de cinqüenta anos depois ainda pinga leite das tetas dessas imagens miúdas da casa da infância.
9.
Mais de cinqüenta anos depois sou o menino bebendo o leite e o sangue da terra, chorando o Paraíso Perdido, sentado na árvore sobre a ponte, no dia grande sobre o monte em chamas.