Minha Última Boneca

Em setembro de 1949, eu havia completado sete primaveras e aguardava com muita expectativa o Natal daquele ano. Nossos Natais eram celebrados em família de uma maneira muito simples, mas tinham calor e sabor. Nossos pais nos preparavam para a vinda do Menino Jesus, contando histórias, rezando e, também, com aquela refeição especial. E uma roupa nova nunca nos faltou para irmos à Igreja, naquela noite cheia de luz! Então, por que razão naquele ano teria eu um Natal especial?

Meu pai era ferroviário e, com seu magro salário, conseguia sustentar nossa família a custo de muito sacrifício. Levávamos uma vida modesta, sem nenhum luxo, mas tínhamos sempre o essencial, em se tratando de alimentação, vestuário e moradia. Por “tradição econômica” de minha família, ganhávamos, aos sete anos, o último brinquedo. E nós, meninas, escolhíamos uma boneca: a mais bonita, desde que dentro de nosso poder aquisitivo.

Aquelas bonecas que ficavam nas vitrines das melhores lojas da cidade, e que faziam crescer e brilhar nossos olhos, estavam completamente fora de nosso alcance. As bonecas que, até então ganháramos, eram feitas rusticamente de massa de papel, pintadas de cor-de-rosa. A boca e os olhinhos eram de papéis desenhados e pregados no rosto. Elas não podiam com umidade e, quando ficavam sujas, vinha a tentação de nelas dar um banho. Aqueles “bebês”, para nossa tristeza, em pouco tempo, se desfaziam.

Finalmente, chegara o dia 24 de dezembro. Minhas irmãs e eu passamos o dia arrumando a casa, lavando roupa ou arrumando a cozinha. Com sagrada impaciência, aguardava o momento em que minha mãe teria disponibilidade para sairmos. A loja de brinquedos era bem longe de nossa casa, mas isso não constituía para mim nenhum problema. Com muita expectativa e emoção, não via a hora de tomar posse de meu último brinquedo! Imaginava uma bonequinha loura, de cabelinho e com linda roupa!

O relógio, que ficava na parede da copa, finalmente bateu, solenemente, 8 badaladas - 20 horas - quando minha mãe e eu fomos, às pressas, em busca do meu presente. Não era costume enfeitar as ruas com lâmpadas coloridas e pisca-piscas, mas era grande o colorido humano naquele vai-e-vem. Muita gente deixara para última hora, como nós, para fazer as compras do Natal e temia não encontrar o que queria.

A loja estava naquele rebuliço. Depois de uma longa espera, a vendedora veio nos atender e me encontrou, admirando as lindas bonecas que estavam nas prateleiras. Só admirando, porque nosso dinheiro apenas deu para levar uma boneca que não tinha cabelinho nem era bonita. Seu corpo era de pano. Os braços, pernas e a cabeça eram de papel marché, com uma camada de tinta cinza-claro. Os olhos e a boca eram também pintados com tintas brilhantes. Ela tinha um dispositivo, dentro do peitinho de algodão, que imitava um choro de criança, quando era virada de bruços. Não era a boneca dos meus sonhos, mesmo assim, eu “precisava” me agradar dela.

Não havia outra alternativa. Mal esperei que ela fosse embrulhada e dela já me apossei. Apertei-a com carinho em meus braços, pois para mim já representava um tesouro. Com cuidado redobrado, mas com a mesma pressa, foi a trajetória da volta para casa. Estava quase na hora da “Missa do Galo”.

Morávamos bem próximos à Matriz do Divino Espírito Santo, em Divinópolis, que mais parecia uma capela, antiga e bem pequenina. Quem quisesse um lugarzinho para se assentar, precisava chegar bem mais cedo. Coloquei minha boneca na cama e, em poucos minutos, já estava na igreja. Padre Belém celebrou a missa da meia-noite. Era um padre muito eloqüente e querido pelos seus paroquianos, principalmente pelas crianças. A missa ainda era rezada em Latim. O padre, de costas para o povo, de vez em quando, voltava-se para a assembléia e dizia:

- “Dominus vobiscum!”

- “Et cum Spiritu tuo!”, todos respondiam.

-“Oremus. Viderunt omnes fines terrae salutare Dei nostri...” continuava o celebrante.

E eu pensava:

-“Minha bonequinha está lá me esperando!”

Minha cabecinha de criança não conseguia se concentrar, pois o pensamento estava na boneca. Se seguisse o impulso de meu inocente coração, ela estaria ali na igreja comigo.

Foi cantada, por toda a assembléia, a tradicional canção:

“ Noite feliz, noite feliz, Ó Senhor, Deus de amor,

pobrezinho nasceu em Belém...”

Aí, sim, terminou a cerimônia religiosa e finalmente me vi em casa.

Mil planos fazia eu naquela noite. Coloquei o nome de “Maria de Lourdes” na bonequinha e convidei minha irmã mais velha, Luzia, para ser a madrinha. O batizado seria durante o dia de Natal e docinhos não faltariam. E foi pensando assim que, com a boneca, dormi realizada.

***

Muitos Natais já se passaram, alguns alegres, outros tristes. Agora sou avó, mas não me esquecerei jamais daquele Natal, quando ganhei aquela boneca de corpo de pano, de braços, pernas e cabeça de papel marché, acinzentada, que não tinha cabelinho nem era bonita, e que guardo até hoje, carinhosamente, já velha e trincada, mas que faz parte de minha história.

***

Concorrendo com esta crônica no Concurso 2007 - XII CONCURSO DE PROSA - Prêmio Jornalista Omair Fagundes de Oliveira, em Bragança Paulista, fiquei muito feliz com o diploma de "Menção Honrosa".

fernanda araujo
Enviado por fernanda araujo em 24/03/2006
Reeditado em 10/12/2007
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