Casos e causos

Quem nasceu, como eu, em cidades pequenas sabe bem como elas são marcadas por personagens pitorescos e muitas histórias, normalmente passadas adiante em registros orais. A minha cidade natal – Boa Nova-BA – é um lugar onde as pessoas adoram contar casos e “causos”. O incrível é que até hoje, quando vou lá, sou surpreendido por novas-velhas histórias, muitas delas de figuras já bem tarimbadas na memória local.

Parte da minha queda por escrever vem do contato com esse universo informal, revelado nas mais diversas circunstâncias. Uma delas – a favorita das minhas lembranças – está ligada à minha infância, na década de 70, quando a cidade só tinha energia elétrica das 18 às 23 horas (as usinas termoelétricas eram uma realidade em centenas de cidades do Norte e Nordeste do país). Às vezes faltava “luz” por dias seguidos e as famílias trocavam as TVs pelas cadeiras nas calçadas, iluminadas por candeeiros ou fogueiras. Nestas circunstâncias eram contadas e recontadas as histórias locais.

Em 2003 o advogado e bancário Nesmar Andrade – um boanovense que saiu da terra natal há várias décadas, escreveu e bancou o próprio livro – “Retratos de Boa Nova”, recheado de causos da terrinha. Sem editora para divulgar a obra, ele partiu para o corpo a corpo, chegando até ao programa Jô Soares Onze e Meia – onde pôde contar algumas pérolas que registrou.

Eu e alguns conterrâneos, aproveitando o trânsito do Orkut, criamos ali a comunidade “Casos e Causos de Boa Nova” para também guardar as tantas histórias que um dia chegaram aos nossos ouvidos. Uma delas aproveito para contar aqui agora. Outras, espero poder contar em breve.

Apesar de muito pequena e atrasada na década de 1950, Boa Nova tinha algumas formas de lazer que hoje ninguém sequer sonha. Era o caso do cinema. A cidade tinha uma sala de projeção, que estava sempre lotada, principalmente nos fins de semana. Os jovens da época iam para lá independentemente do filme que estivesse passando. Assistiam a tudo, desde que pudessem namorar no escurinho.

Claro que este não era o objetivo dos mais velhos, a exemplo do Mestre Elpídio, um pedreiro (mestre-de-obra) muito conhecido na cidade. Apesar de bastante requisitado no seu ofício, ele até então carregava um trauma: ser analfabeto. Isso mudou assim que entrou numa escola voltada para adultos, mantida com a ajuda da Prefeitura.

Entusiasmado com os resultados que já estava alcançando nos últimos meses e orgulhoso de si mesmo, Mestre Elpídio fazia questão de demonstrar os novos conhecimentos onde tivesse platéia. Era muito comum alguém passar na rua e ouvir aquela voz potente lendo alto algum letreiro de loja, alguma propaganda em embalagens de produtos e, claro, as legendas dos filmes no cinema.

Ele sempre se sentava nas primeiras fileiras e, volta e meia, podia-se ouvir a sua voz dando conta das legendas. Num determinado dia, o cinema estava cheio para assistir a uma fita de aventura. Lá estava o pedreiro, animado para mostrar sua nova destreza em público. Assim que as luzes se apagaram e começaram os trailers, também tiveram início os beijos e abraços dos jovens casais, que aproveitavam todo o tempo que podiam enquanto o filme não começava.

Eis que de repente, em meio ao silêncio, ouve-se a voz impostada de Mestre Elpídio: “trazem o tigre!” Um jovem que se encontrava logo atrás dele, mas que ainda estava entretido com a namorada, ouviu aquilo e tentou olhar a tela para ver do que se tratava. Tarde demais; já havia passado a legenda. A fita seguiu adiante e somente no final todos puderam entender aquela estranha construção gramatical do Mestre Elpídio. Ele, na verdade, tinha lido o nome do filme: “Tarzan e o Tigre”.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 31/10/2008
Reeditado em 05/03/2009
Código do texto: T1257961