MEMÓRIAS DA PROFISSÃO
Aos 15 anos, tive uma breve experiência de trabalho com meu avô português, José Simões de Mattos, que era representante comercial do Lanifício Inglês (escrevia-se Inglez) , do Conde Gaspar Gasparian. Ajudei-o quase que indiretamente, estimulando-o a procurar novos clientes, mais do que qualquer outra coisa. Foi pouco, mas deu uma boa fatia de comissão sobre negócio fechado com a loja de tecidos Dabdab. Também lhe prestava auxílio, datilografando manuscritos de um de seus livros sobre Espiritismo. Isso deve ter durado uns três meses, foi divertido e rentável pra mim, um piá, recentemente egresso da nossa colônia italiana interiorana, morando longe dos pais, estudando sob o jugo jesuíta do Colégio Anchieta e assaz "durango".
Emprego mesmo, no plano formal, meu pai arrumou-me logo que completei 18 anos, se é que foi um "emprego" de verdade: fui contratado pelo Departamento Estadual de Saneamento da Secretaria da Saúde do Estado, situado ali no “Forte Apache”, na Praça da Matriz, em Porto Alegre, através de verba da “Campanha de Combate ao Culex”. O local já abrigou de tudo, desde parte do "Forum" até a Susep e o MP, hoje nem sei. Ao invés de exercitar a função de mata-mosquito, fui destacado para tarefas de auxiliar administrativo no Departamento. Tinha talento e experiência para combater mosquitos em geral, mas esta arte só desenvolvi plenamente ao longo da vida, em andanças mais inóspitas. Naquele trabalho, fui apenas mais um burocrata sem grande motivação. Claro, estava em desvio de função. Meu pai era, então, Diretor-Geral da Secretaria da Saúde do Estado e Secretário-Substituto. Não dá pra dizer que fosse genuíno caso de nepotismo, pois havia melhores cargos disponíveis e o “velho” insistiu para que eu iniciasse por baixo, ganhando salário-mínimo. A meu favor, diga-se que não queria o emprego, que o achava inadequado, mas meu pai é quem respondia integralmente pelas finanças da família de cinco filhos e considerou que, sem aquele reforço contributivo, eu seria uma grande mala sem alça. Tinha razão, mas não sei se o emprego resolveu muita coisa: quando recebia o salário, reunia o proletariado amigo no boteco em frente à repartição, ao meio-dia, e liberava a cerveja. Lá se ia quase a metade do meu ganho mensal. Algumas vezes fiz isso para compensar-me do desconforto da missão que o pai me impingira. Era, sim, rebelde e, na verdade, não havia conseguido coisa melhor, e nem estava muito animado para isso. Aos 18 anos, acreditava ainda que meu caminho tivesse de ser mais amplo e iluminado e sentia-me deslocado naqueles misteres comuns, banalíssimos, que não combinavam exatamente com as ideias que começavam a germinar na minha cabeça. Diga-se que, à época, fazia muita política e atividades estudantis. Fui, enfim, levando o trabalho à moda "miguelão", por dois anos, e, aos vinte, joguei tudo para o alto e parti para a Europa à procura de alguma coisa mágica, se é que me entendem. Contra a vontade da família, é claro. Passagem só de ida e uns trocados no bolso.
De volta da viagem, meio ano depois, em plena ebulição juvenil, meu pai não quis saber de me dar refresco e conseguiu-me outro emprego com seu grande amigo e conterrâneo de Itaqui, Fernando Bruno de Carvalho Degrazzia, advogado ilustre, que chefiava a Procuradoria Jurídica do DNER-RS, a PJ-10. Tive de abraçar a causa por uns dois anos e meio, sempre na base do salário mínimo e como auxiliar administrativo, mas já com função um pouco mais interessante.
Não se espantem, naquele tempo era assim mesmo que se conseguia a maioria dos empregos e cargos, especialmente no seio das famílias pequeno-burguesas. Aliás, empreguinhos dos mais "mixurucas". Poucos eram os concursos públicos e, mesmo assim, a gente não era direcionada para tais metas. Tudo começava com amizade de pais ou familiares, contatos políticos, afetivos, empresariais ou profissionais e, se a pessoa fosse bem avaliada na entrevista com quem decidia e mostrasse algum potencial, estava contratada ou nomeada e o grande teste era o desempenho no dia a dia. Também não havia grandes mamatas, ao menos para os jovens mortais comuns. Afinal, estávamos nos anos sessenta. Nessa nova função pós-viagem, também não agreguei grande coisa, salvo contatos edificantes com eminentes advogados do órgão, tendo participado da desapropriação de imóveis à margem da BR-116, em duplicação na região metropolitana, colhendo escrituras e documentos de casa em casa e propondo acordos amigáveis aos proprietários. Mas continuava um barnabé em desconforto, preocupado muito mais com política estudantil, leitura, cinema, teatro, festas e namoros do que com deveres burocráticos laborais. Estava com 22 anos, mais para o final da Faculdade de Direito da Universidade Federal, que, até então, não me empolgara. Mas a vida era assim mesmo, nesta fase: a gente ia aos trambolhões, sonhando muito, mas comendo arroz com feijão e tentando encontrar-se.
Meu pai tinha exercido mandato de deputado estadual e ficara amigo de um colega de bancada, Octávio Badui Germano, com quem comentava acerca de suposto talento intelectual que eu possuía e que estaria preste a florescer na vida profissional. O “velho”, desde que eu não estivesse presente, funcionava como meu marqueteiro e empresário. Pois esse ilustre deputado, na condição de Presidente da Assembléia Legislativa do Estado, pediu que eu o procurasse para estudar a hipótese de aproveitar-me, apesar de estar com sua equipe já montada. Era 1969, no recém inaugurado prédio do Poder. Fui procurá-lo e conheci uma pessoa muito agradável, simpática e sagaz. Pediu-me que lhe redigisse alguns textos, conversamos bastante, mas, de concreto, nada. Deixei de comparecer à Assembléia, porque ainda era verde nas manhas da política oficial. Queria que tudo acontecesse muito rapidamente. Certo dia, esse Presidente me chama e reclama que eu havia desaparecido. Fiquei meio sem jeito, mas Dr. Octávio era muito versado nessas artes e ofícios e, depois de algum papo e novos testes, acabou por nomear-me Oficial de Gabinete, com a missão de redigir-lhe discursos, palestras e eventuais conferências, além daqueles afazeres inerentes ao cargo de receber partes e equacionar problemas. A remuneração já passara a ser apetitosa. Construímos sólida amizade e a experiência de trabalho foi muito positiva, mas, uns cinco meses depois, fui convidado, com mais quatro ou cinco colegas de turma do último ano da Faculdade de Direito da UFRGS, a ser auxiliar-jurídico do Banco Crefisul de Investimentos, o mais poderoso do Estado, passando a advogado após a formatura, em 1970. O Chefe da Assessoria Jurídica era o falecido Desembargador Isaac Melzer, advogado experiente, ótima pessoa e de quem fiquei bastante amigo. Não preciso dizer que a vivência foi notável e os ganhos propiciaram-me o encaminhamento dos planos para o casamento, em 1971. Já me consideravam um bom advogado, ou melhor, uma promessa que, de certo modo, valeria a pena.
A partir de então, exerci funções jurídicas, diretivas, técnicas, administrativas e de magistério superior, ora no setor público, ora na iniciativa privada, também com escritório profissional estabelecido em 1974, com Neco Domingues, depois com Ricardo e Ruy Fernando, e que encerrei definitivamente em 2004. Enfim, peguei gosto, encarei desafios enormes e meti as caras. As peripécias foram muitas, mas não vale a pena cansar o leitor nestas circunvoluções, afinal, foram 50 anos de história em diversificados planos e que, no dia 02 de março deste ano, tiveram o seu final. Valeu a pena, com certeza.