Ficou a Amizade...
Ficou a Amizade...
A R. Barbosa de Sousa
Uma vez (não sei se longe ou pouco) lendo o conto de Clarice Lispector, intitulado O Ovo e a galinha, vi-me cercado de palavras que mais eram sentidos soltos como um panamá de borboletas no ar, uma colcha de retalhos. Estes sentidos me levaram a inúmeras leituras sempre uma superposta à outra até de nada mais haver que não calar e simplesmente senti-las. Eu sentia preso na garganta uma coisa que apenas se exprimia como emoção. Era, no máximo, um gesto. Martelavam-me campos imagéticos como “mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo”. Veio-me, pois, o sentimento da Amizade em um particular.
Assim como o ovo na introspecção de Clarice, a Amizade atravessa a história, resiste aos tempos e modos para que concluamos que, uma vez arraigada, torna-se ter visto há três milênios a se traduzir num tempo que aponta sempre o horizonte. A impressão de se ter no Amigo uma história atual, sempre existida, dada a natureza da confissão, da co – autoria, da conexão com o eterno presente.
Amigos são para a vida toda. O clichê, aparentemente oco como são os clichês, diz sobremaneira. Sim, porque essa “vida toda” é o instante da Amizade, da sua descoberta e entrega. E o tempo duradouro está nos desafios das discordâncias, dos estresses, da estupidez, da violência e falta de tempo a que nem as grandes relações amistosas estão isentas. Mas o Amigo, seja como for, sempre nos recupera, sempre espera por nós. Imperfeito e por vezes abstrato em guardar ternura, ele nos revela uma religião, uma espera e entrega fiel sem dispensar pedaços.
Assim como “No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo” guardamos conosco a aparição do Amigo como uma reserva. Temos o poder de conciliarmos nossa vida sozinha a um gesto primoroso do Amigo que nem sempre pode estar por perto. Vinícius de Moraes, talvez penando, escreveu: ”A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros na vida”. Nosso poetinha, assim como a escritora supracitada, me causa o impacto de um pesar misturado a uma lembrança bonita: a Amizade que escapou escorregadia sem culpa nem data de retorno. Temos a noção de vida inteira associada a um par de cadeiras para uma conversa íntima. No entanto, não raro, resta-nos o íntimo; recolhem-se as cadeiras e o vazio de as cultivarmos em nossa casa para a sensação de retorno físico. Quando os Amigos partem não há como fugir da solene dor de nos contentarmos com e-mails caros de fim de semana, alguns telefonemas ou simplesmente notícias de terceiros.
Logo, o vazio deixado nas tardes quentes, da recordação dos encontros certos e sem avisos, das comemorações. Parece que o sonho faz cobertura ao tempo da chegada. Na partida, porém, esse mesmo sonho se desdobra numa emoção peculiar de não acolhermos direito. O dia marcado ou o “de repente parti” me remete ás manhãs em que os pardais se espantam com um bicho inédito em cima da árvore. Uma espécie de traição em que só se comprova as vítimas por não saberem ser outra coisa. Crime perfeito. E perfeito o amor imperfeito de Amigo porque, mesmo deixando de haver as datas, dura. Fica a lembrança de que outrora fomos aceitos, ainda que não houvesse aprovação, de que ficávamos á vontade como se estivéssemos em companhia de nós mesmos, do ensinar na mágoa a linguagem do perdão. E aquele diálogo de gestos que dispensam tese, literatura, filosofias, discursos. A prova da Amizade é a falta mesma de prova, porque nunca se traduz bem o dia-a-dia, embora triste e solitário pela partida. Eis outra investida no conto: “Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo.”
O pensamento no retorno do amigo se debate com as evidências que justificam a partida. O companheiro de toda hora se engajando noutros grupos, arriscando uma nova vida que possivelmente não confere com a que uniu o relacionamento agora à distância. Mas assim como O ovo nunca lutou. Ele é um dom, a sintonia encurta distância e tempo numa lembrança aos poucos bonita e certa. Para parafrasear o supracitado conto, O Amigo é invisível a olho nu. De amigo a amigo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu.
Neste caso, resta-me a ternura e seus favores que também são coisas da vida. Resta-me a memória flagrante e a sensação de sintonia mesmo que a inutilidade das horas queira me arrastar para o vazio gratuito. Foi-se o Amigo no bonde, ficou a Amizade.
E assim marco minha perseguição na leitura do conto O Ovo e galinha que, por coincidência ou cisma minha, termina meu texto: “Talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.”
(Geovane Monteiro a 27 / 08 /2008)