O afogado
Quem escreve um poema salva um afogado, disse Mário Quintana. Salva em primeiro lugar o próprio poeta, completa Affonso Romano de Sant’Anna. Eu primeiro lembrei-me do meu poema “O Afogado”. Tornou-se um tema recorrente em minha poesia, o afogado. Ou algum elemento que o lembre. A gaivota e seu grito desesperado sobre a pedra do mar, onde sangra. Essa gaivota compareceu em três poemas meus quando escrevia “O Emparedado”, o meu primeiro livro.
Depois, não sei por que, lembrei-me do poema “Quintana’s Bar”, de Drummond. Algum afogado no poema? Abro a “Poesia Reunida” de Drummond, encontro o “Quintana’s Bar”, leio-o e não encontro nenhum afogado, nem gaivota ao menos. E eu que imaginava um aquário, e o poeta dentro, entre seres marinhos, fantástico, irreal. Mas olho bem e encontro uma estrela-do-mar e a gruta camoniana. Lembro-me de Camões salvando-se do afogamento, nadando com uma das mãos e com a outra carregando “Os Lusíadas”. Dinamene, coitada, é a afogada da história.
No fim do poema, viaja o poeta Mário Quintana. O destino do poeta é viajar. Mesmo que seja um poeta racionalista como João Cabral – diplomata, viajou à Espanha e mesmo ao Senegal de Leopold Sedar Sanghor. Mas fez a sua viagem, também, dentro do poema. Viajou nas imagens que criou muito racionalmente, as ondas do canavial que se tornaram ondas do mar, as lindas cabras de tão agrestes ou o ovo sem metafísica. O destino do poeta é viajar. O poema é uma “L’Invitation au Voyage” de Baudelaire. É mais que um convite ao sonho, é, na concretude das suas imagens, um apelo a superar o real, ir além, entrar numa outra realidade.
“O afogado mais belo do mundo” é um conto de Gabriel García Márquez. Não sei se foi esse conto que me levou a viajar com o meu afogado, criando-o, ou se foi T. S. Eliot. Confesso minhas fontes. Originalidade não existe. Talvez a minha fonte seja “A gaivota” de Tchekof, mas eu nem a havia lido quando uma gaivota começou a gritar e a agonizar nos meus poemas, como não havia lido García Márquez ou Eliot. Mal? Bem. A leitura nem é necessária, basta um nome, uma imagem, uma evocação – e começa a viagem. O afogado? Estou salvo.