MEMÓRIAS DA INFÂNCIA III

Preciso explicar o contexto da família. Meu pai era apaixonado por minha mãe e assim foi a vida inteira. Era um sentimento que se sobrepunha a tudo o mais, à profissão, aos filhos e assim por diante. Não é preciso dizer que era um marido possessivo e ciumento, ainda que isto não seja uma crítica dura, em face de suas tantas qualidades. É importante entender que eram tempos de machismo e que o homem era o indiscutível chefe da família. Minha mãe, embora bastante dependente dele, não tinha as mesmas características e lhe retribuía a seu modo, mas com muito afeto. Sendo mulher do lar, não-vaidosa, despojada e sem muitas ambições pessoais, seguia a trajetória que lhe fora traçada na vida de acordo com a doutrina e as convicções espíritas que meu avô José lhe incutira. Mulher muito bonita e charmosa, cumpria sua missão de esposa e mãe, procriando cinco filhos, aliás, seis, pois um irmão meu, nascido um ou dois anos depois de mim, faleceu no próprio hospital, por barbeiragem da enfermaria, segundo consta. Foi uma perda que registrei, tanto que até hoje o assunto me vem à mente. Creio que se chamaria Marco Antônio ou João Francisco, uma das duas coisas. Muito jovem, com um filhinho asmático e bastante alérgico, de cidade pequena em cidade pequena, a procurar seu espaço, longe dos pais, com infra-estrutura material escassa, seria normal que cometesse erros como mãe ou esposa. Na personalidade forte e impositiva de meu pai - médico e homem de berço economicamente mais pujante – creio que encontrou seu maior desafio de sobrevivência e afirmação como pessoa. Abriu mão, por certo, de muitos caprichos e fantasias da adolescência e, inexperiente, pagou, junto com os filhos, o preço de ter de enfrentar um mundo muito mais hostil e dificultoso, que as mães dos anos 70 em diante jamais tiveram de enfrentar. Mas casou apaixonada pelo pai. De igual modo, meu velho pai buscava, por força de vivências pessoais jovens muito duras, encontrar um padrão ideal de conduta como chefe de família, esposo, genitor e profissional, depois, líder político, num tempo em que tais papéis tinham matizes de sacralidade: missão, responsabilidade histórica e familiar, cobrança da sociedade, valores morais e religiosos rígidos e conservadores. E demandava sacrifícios. Junte-se a isso a mística que a figura do médico inspirava no interior do Estado, sobretudo, e fica mais compreensível o porquê de muitos exageros, erros, conflitos, traumas e desacertos familiares. Éramos frutos deste contexto, assim como nossos pais traziam a marca da geração e das idiossincrasias de seus Maiores, muitas vezes carregada de sombria austeridade. Nada comparável a tempos mais recentes de liberalidade de costumes, de democratização da cultura e informação e de forte afirmação das individualidades. Nos anos 40 e 50, o conhecimento atravessava o mundo no andar das diligências. Aliás, o pós-guerra acarretou transformações mais lentas. Fica difícil julgar o passado com padrões e referências de que hoje dispomos. Por outro lado, é natural que filhos critiquem e se queixem dos pais: afinal, é a criatura libertando-se gradualmente do criador. É mesmo compreensível que se revoltem quando existe algum tipo de opressão - real ou suposta. É o caminho da auto-afirmação e da construção da identidade. Tirantes casos de abuso, ignorância, opressão extrema ou até de hostilidade, pode ser produtivo para o filho o cultivo de certas insatisfações, por que vida é luta constante entre interesses ou vontades pessoais e agruras da realidade. Viver é saber adaptar-se, mas também transformar a circunstância adversa em caminho proveitoso.

Confesso que, quando, ainda garoto, secretamente, lia os diários de minha mãe, seus queixumes me afetaram um pouco, especialmente por que se exclamava, quase em desespero, de minhas seguidas doenças de criança, além dos sérios problemas de desenvolvimento de minha recentemente falecida irmã, Ana Maria. Mas posso assegurar que isto é apenas um episódio de lembrança neutra nos tempos atuais, inclusive por que não teria qualquer sentido escrever num diário íntimo coisas que não fossem emocionalmente preocupantes. Não acho que o homem nasce pronto, mas é forçar a barra querer atribuir aos pais possíveis falhas da pessoa no combate da vida. Mais importante para minha formação foi ter assimilado duas coisas básicas: meu pai sempre foi tratado com muito respeito e consideração, pelo caráter, competência profissional e dedicação e, minha mãe - por seu carisma e personalidade forte, extrovertida, espontânea, autêntica. Foi adorada pelos que com ela conviveram. Isto, sim, é marcante e faz diferença na auto-estima, na formação e no preparo para o convívio social construtivo do jovem. Há certas atitudes e exemplos que valem por muitas lágrimas, beijos, carícias e pequenos desvelos - a despeito da grande significação emocional destes. Acho que foi por influência dos pais que desenvolvi o gosto pela leitura. Minha mãe, que não fez curso superior, lia muito, mais do que meu pai, que, entretanto, sempre valorizou os clássicos da literatura. Parecia que comprava livros a metro, tantas eram as coleções e enciclopédias que adquiriu, embora sua paixão fossem os discos de vinil: deixou uma coleção insuplantável de clássicos, tangos, sambas, boleros, mambos, rumbas, maxixes. O velho adorava comprar livros. Quando passei no vestibular de Direito na UFRGS, ele saiu a frequentar sebos, livrarias e a visitar advogados de renome que pretendiam desfazer-se de livros de Direito, por isto ou por aquilo. Comprou-me tantos livros, alguns raríssimos da literatura jurídica universal, que até me forcei a gostar mais do ramo. Com relação ao Direito, devo a meu pai uma palavra sábia, que é preciso registrar. Estava em dúvida se cursaria filosofia, jornalismo ou letras. Aí meu pai ponderou que eu deveria cursar o Direito para conseguir certa autonomia financeira, mais duvidosa nas outras profissões cogitadas, e que, depois, que fosse escrever meus livrinhos, dar aulas ou fazer o que quisesse. Fazia sentido e, neste caso, não o contestei. Afinal, vivíamos no Brasil.

Naquele tempo, em Encantado, além das famílias de tradicional poder econômico, eram importantes na cidade o Padre, o Prefeito, o Médico, o Juiz, o Advogado, o Promotor de Justiça, o Gerente de Banco, o Exator Estadual, o Presidente da Câmara de Vereadores e mais alguns poucos. Para mim, importantes mesmo eram o Barbeiro Simonini, o Técnico do Esporte Clube Encantado, Vitor Berticelli, o dono do bar central da cidade, Cardênio, a Madre Superiora da Escola, a Diretora do Grupo Escolar, Lilia Chanan, o dentista Ziglio, o dono do principal mercado da cidade, Scarello, e o Dércio Tarter, dono do cinema Marabá, onde assisti a meus primeiros filmes de bang-bang. O resto nem existia: era o mundo distante dos grandes.

Minhas lembranças estão mais focadas no tempo em que morávamos na bela casa colonial que meu pai fizera construir em ponto nobre da cidade. Mas em Encantado ainda moramos – eu já residindo com os avós em Porto Alegre - numa outra casa, que meu pai alugou de uma viúva, Dona Celestina, pois vendera a casa anterior para mudar-se para Porto Alegre e os planos precisaram ser adiados por uns dois anos. Ao lado dessa última moradia em Encantado, havia uma plantação de cana-de-açúcar, onde eu me divertia nas férias, chupando cana. Foi nessa casa que quase morri incendiado. Certa noite, empurrei as cobertas para fora da cama, que caíram sobre o inseticida “boa-noite”, que ficava queimando para afugentar os mosquitos. Por sorte, o pai levantou-se, sentiu o cheiro da fumaça e me arrancou do quarto, já com labaredas altas brotando do assoalho de madeira. Ao contar depois o episódio – disseram-me que estava intoxicado com a fumaça – eu narrava que, ao me puxarem da cama, já estava “carbonizado” e a família ria muito. Diziam que eu era um guri inteligente, mas, pelo visto, nem tanto.

Na área de ladrilho situada na lateral da residência, armava o time de futebol da família pra jogar com outros piás, quando não tinha mais nada para fazer, convocando minhas irmãs Ana Maria e Vera Marisa - dona de uma canhotinha potente, ainda que fosse uma guria muito pequena.

A adolescência, então, florescia: arrumei um saco de areia para esmurrar, que colocava num galho de árvore em frente ao paiol, nos fundos da casa. Já começava a usar gumex ou glostora no cabelo e, à noite, quando os velhos iam a um baile ou ao cinema, com o incentivo e a colaboração de amigos mais velhos, convidava as empregadas das redondezas para uma reunião-dançante, onde aprendi a bailar um tango e outras “cositas”. Às vezes, ia remar ou boiar em pneus de caminhão, dar "pontas" da balsa no Taquari, na praia do Picão. Fazia musculação, pensava em me alistar na Marinha de Guerra, pois ela oferecia, após a formatura, uma viagem de seis meses pelo mundo; ensaiei fazer um curso de detetive por correspondência, já que lia muita literatura policial, mas não obtive recursos para a empreitada. Começava, enfim, naquele momento, uma nova fase de vida bem menos ingênua. Tive a sorte de desfrutar de dois mundos, Porto Alegre e Encantado, com muitos bailes, reuniões-dançantes e festas. Tempos dos Metais em Brasa, Ray Coniff, Bill Haley e seus Cometas, The Platters, Neil Sedaka, Elvis Presley, Toni e Celi Campello, Rita Pavone e outros tantos que embalaram as belas noitadas da época. A infância acabara.

José Pedro Mattos Conceição
Enviado por José Pedro Mattos Conceição em 07/08/2008
Reeditado em 22/09/2019
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