Moreno
Debaixo de um escaldante sol de verão, quatorze horas, nem mais, nem menos, lá estava ele cantarolando, enquanto sua junta de bois arava o terreno da Barra dos Dois Rios, Fazenda do Pontal, para uma nova semeadura. O interessante é que ele não perdia tempo com tristezas. Tio Vicente, irmão caçula de minha mãe, estava sempre de bom humor e era um incansável trabalhador. Buscava em seu variado repertório, quase sempre uma música sertaneja:
“Que braseiro! Que fornalha!
Nem um pé de plantação
Por falta d’água perdi meu gado
Morreu de sede meu Alazão.”
Parou a cantoria, para responder a um inusitado cumprimento:
- Boa tarde, Sô Vicente Cesarinho!
Interrompe o trabalho e dedica seu precioso tempo ao visitante. Era seu jeito de ser, doando-se, com todo o amor ao próximo, a quem tivesse necessidade de sua ajuda, sem distinção de cor, credo ou qualquer outra diferença. Para todos tinha uma palavra amiga, um socorro na hora certa, um ombro para quem dele precisasse.
É que chegara na cidade um “Circo de Touradas” e meu tio era sempre procurado para ceder suas vacas e touros. Ele não sabia dizer não, embora tivesse muito xodó com seu gado.
O empresário, Divino Roseno, queria justamente contratar o boi Moreno, que era muito bom de serviço no arado, mas se transformava no picadeiro!
- “Ô Sô Vicente, eu já anunciei a participação do Moreno na tourada, com um sucesso garantido. Se ele não comparecer, meu circo perde a clientela!
-“Seu moço, como pode você anunciar uma notícia dessa, sem falar comigo? Veja como o Moreno está magro. Agora é época de seca, e o gado enfraquece.
- Sô Vicente, insistia o rapaz, eu suplico, só a presença dele já fará feliz aos freqüentadores fiéis de meu circo! Que ele faça só uma pequena apresentação.
E tanto o moço insistiu, que Tio Vicente, com seu boníssimo coração, concordou em emprestar-lhe o pobre do boi.
E, como era de praxe, na hora combinada, Carlos, seu filho mais velho, um menino ainda, e o Zé Sinhorinha, empregado da fazenda, levaram o famoso Moreno para a cidade. Na sua chegada, gritaria e aplausos da molecada, empolgação que só fazia estressar um boi, acostumado com a calmaria e o silêncio reconfortante da roça. Tio Vicente e Tia Rosa, sentados na arquibancada, cheios de expectativa e ansiedade, aguardavam mais uma proeza do grande astro!
E na arena entra o tão esperado “artista” que logo vê, em sua frente, o toureiro Borracha, que sempre dava um show à parte, com um salto mortal, caindo montado no lombo do boi. Mas com Moreno, Borracha se deu mal, porque, como o boi de carro normalmente investe com olho aberto, Moreno o pegou no ar e Borracha caiu de costas atrás do boi, desmaiando. Moreno começou a esfregá-lo no chão. Os outros toureiros não tiveram coragem de socorrer o amigo. A platéia grita de horror. Tio Vicente desceu as arquibancadas correndo e pulou a cerca da arena, contra os protestos de Tia Rosa:
- ¨Num vai não, Vicente, num vai não que o Moreno tá doido, ele vai te matar¨.
Tio Vicente chegou conversando com o boi:
- ¨Moreno, Moreno¨ e passou a mão no chifre dele.
Nessa hora, há um silêncio total. O boi, largando sua vítima olha para seu dono. Ele entende aquela linguagem. Ainda com a respiração ofegante, deixa-se levar para o tronco. E o Borracha foi levado para a Santa Casa.
Na véspera de outro Circo Tourada, Tio Vicente escreveu no lombo desse boi: ¨BOI MORENO TIRAPROSA¨ com cal, e o pôs em cima de um caminhão, desfilando pela Avenida Primeiro de Junho e pela Rua Goiás, exibindo seu troféu. No outro dia, lá estava ele dando o maior trabalho para os toureiros. A volta que deu com ele no caminhão valeu arquibancadas cheias e um cachê mais alto.
Hoje, não acontecem mais touradas em Divinópolis, como na década de cinqüenta. Mas será que teriam charme sem a presença de Moreno?
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Fui agraciada e fiquei muito feliz com a transformação desta crônica em lindos versos! É uma obra de arte do amigo Volnei.
Obrigada, amigo, e um grande abraço, Fernanda.
Moreno
Eu queria nestes versos
Uma história lhes contar
A história do boi Moreno
Que deu muito o que falar.
Lá na Barra dos Dois Rios
Na Fazenda do Pontal
Boi Moreno era valente.
Muitas vezes isso mostrou
Boi puxador de arado,
Muita terra ele lavrou
Por aquele chão mineiro,
Onde sua história começou.
Um dia, chegou na cidade
O circo do Divino Roseno.
Trazia um toureiro valente
Que vinha desafiar Moreno,
Por isso viera com o circo
Confiante e muito sereno.
Seu nome era Borracha.
Tinha fama como toureiro
Muitos touros ele venceu
Por este chão brasileiro
Com Moreno não deu certo
Levou seu golpe primeiro.
Carlos e Zé Sinhorinha
O Moreno pra cidade levou.
Foi recebido com aplausos,
Quando no picadeiro entrou.
Ali parou, olhou para a platéia
Com o casco no chão escavou.
Borracha fez jus ao nome
Por cima de Moreno saltou.
Moreno o pegou de jeito.
Sobre suas costas jogou.
Já no primeiro assalto
Borracha o chão beijou!
Borracha naquele dia
Teve seu dia derradeiro.
Ali perdeu sua fama
De ser um grande toureiro.
Se não fosse Sô Vicente
Morria ali no picadeiro...
Sô Vicente correu logo
E saltou no picadeiro.
Falou baixinho com Moreno
Levou pra longe do toureiro,
Que desmaiado nada via
Ali naquele chão mineiro.
Dona Rosa na platéia
Bastante nervosa ficou.
Numa prece a Nossa Senhora
Por seu marido implorou
Borracha já se recuperava
Do grande susto que levou.
Neste duelo travado,
Entre Moreno e o toureador,
O toureador foi derrotado
O boi Moreno foi o vencedor.
O boi manso de arado
Era um grande lutador.
A notícia correu depressa
Da façanha do boi Moreno
E a derrota do tal Borracha
No circo do Divino Roseno
Que, ali sem toureiro ficou.
Partiu, sem rumo terreno.
Um dia lá na cidade,
Um novo circo apareceu,
Sô Vicente bem ligeiro
No lombo do boi escreveu
Boi Moreno tiraprosa.
Muito toureiro já correu.
Boi Moreno criou fama
Por ser boi dos ligeiros.
De Borracha não se sabe.
Pois sumiu dos picadeiros.
Boi Moreno ficou por lá,
Dando susto nos toureiros.
Com os anos, o boi Moreno,
Dos circos, seu dono o afastou.
Lá pra Fazenda do Pontal,
Pra descansar, Moreno levou.
Muitos anos se passaram.
Do boi Moreno, muito se falou!