MEMÓRIAS DA INFÂNCIA (Parte II)

A educação antiga era baseada em certos dogmas e nós, tanto quanto os pais, éramos vítimas. Não era tempo de liberalidades e carícias. Muito apanhei de rebenque - que meu pai deixava imponente e pedagogicamente pendurado na lareira da casa - de vara de marmelo, chinelo, cinto ou pedaço de pau. Pai que não batesse em filho era frouxo, liberal. E filho tinha de saber apanhar e assimilar. Não que não doesse ou incomodasse. Lembro de uma vez, especialmente. Tínhamos saído uma tarde para a praia do “Picão”, que eu estava proibido de frequentar sem os pais, pelos naturais perigos daqueles banhos de rio – o Taquari – que gostávamos de atravessar, dando "pontas" da balsa ou das pedras existentes lá na margem de Roca Sales. Meu pai, avisado, partiu de carro ao meu encalço. Então levei muita paulada nas pernas com um galho mais robusto de árvore, mas nada de mais grave em termos físicos. Na verdade, eu era um guri até que bem-comportado e não aprontava demais. Comecei a aprontar mesmo foi a partir dos 15 anos, já morando em Porto Alegre, nos tempos de Colégio Estadual Júlio de Castilhos. A partir daí, sim, fiz jus aos laços previamente recebidos. Talvez meu velho pai soubesse prever o futuro.

Lá pelos nove ou dez anos, comecei a me apresentar no CTG Giuseppe Garibaldi de Encantado, dançando músicas gauchescas com a turma de escola e declamando poesias. Aliás, desde os primeiros tempos de Grupo Escolar Farrapos, eu já lia trabalhos, tipo discursos, em solenidades, como Dia da Bandeira, Independência e outras. Acho que tudo começou numa aula, por volta de meus sete ou oito anos, em que, de surpresa, a professora mostrou-nos um desenho em preto-e-branco de um dia de Natal: um guri no quarto, com a árvore natalina enfeitada, muitos presentes e a bola de futebol, espiando tristemente pela janela e vendo a chuva cair torrencialmente. Havia dois desafios: pôr um título e fazer a redação, com pesos iguais. Parece que a maioria colocou “Dia de Natal”, “Natal”, “Natal com chuva” ou coisa que o valha. Pus o título “Uma Chuva Impedidora” e foi um grande sucesso, tirei nota máxima. Dona Lilia Chanan, Diretora, esteve lá em casa para comentar o feito. A gente faz a fama com pequenos detalhes. Aprendi a ler em casa, aos seis anos - o que era "prematuro" para a época, pois faltava muita aula em virtude da asma. A família deu-se conta de que eu já lia quando, vindo de Encantado para Porto Alegre, passávamos à noitinha pela Avenida Farrapos e eu, no banco de trás do carro, consegui ler o letreiro luminoso de uma empresa de então: LUPORINI. Foi uma surpresa. Aliás, meu pai tinha nessa época um flamante automóvel Ford, ano 1951, azul-marinho, mas que, volta-e-meia, mandava pintar de outra cor. Não se trocava facilmente de carro. O consumismo surgiu muito depois. Mas, prosseguindo sobre as “premonições” de meus pais, devo confessar que comecei a me tornar insuportável, vamos dizer, a partir dos quinze ou dezesseis anos. Minha vida virou um processo contínuo de contestação a tudo e a todos. Era rebelde, queria romper os grilhões de uma educação severa numa família de cinco filhos, sem falar da submissão ao catolicismo jesuíta, no Velho Anchieta. Na política estudantil, fui radicalizando ao máximo para a esquerda, até pequenas atividades de subversão ao regime militar de 1964. Conflitos constantes e fortíssimos com meu pai, “revolucionário” de primeira hora e anticomunista dos quatro costados. Ele, deputado estadual pelo PSD, defendia o regime militar de peito aberto e eu engajado e fumegante nos movimentos clandestinos ou escancarados de oposição ao sistema, com episódios de exposição à própria mídia. Por outro lado, como meu pai não era homem de festas e libações, eu me atirava feito louco na gandaia, atravessando madrugadas em festas, bares, boates, na rua ou onde houvesse agito. Não tinha medidas. Quando íamos para a praia veranear, lembro certos desatinos que cometia e que hoje me dão a convicção de que tinha e tenho missões importantes a cumprir no mundo, simplesmente por que sobrevivi. Houve um período em que, com bandeira vermelha tremulando na casinha de salva-vidas à beira-mar, eu religiosamente entrava mar adentro, sozinho, e nadava muito além da arrebentação, até cansar. Aí ficava boiando e saboreando as emoções do perigo e do desafio. Quando voltava, depois de muita onda gigante estourando no lombo, a praia estava repleta de curiosos e de pais indignados. Minha mãe desesperava-se e voltava para casa para não assistir ao absurdo. Meu pai, furioso, já nem falava mais comigo. Dinheiro, então, nem pensar. E assim eu ia irresponsavelmente desafiando a sorte. O pior: jamais fui um grande nadador, aprendi a nadar no rio Taquari, sem qualquer técnica. Preciso contar sobre esse período de desatino, que durou uns dois ou três veraneios, para que ninguém repita a estupidez. Realmente, dei muita sorte – que não sorri a toda hora e para todo mundo. Os meus excessos e maluquices cederam com o tempo, gradualmente, com alguma dose de amadurecimento que chegava. Hoje, fico arrepiado só de pensar e reviver as situações-limite em que voluntariamente me envolvi. Por nada ou, talvez, por tudo. Sempre tive a fantasia de viver no exterior, de ultrapassar fronteiras, conviver com outros povos, outras línguas e culturas. Pois nessa época, por influência de um primo, hoje na carreira diplomática, surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio de um ano, em casa de família, nos Estados Unidos da América. O programa chamava-se American Field Service. É verdade que eu tinha, então, restrições ao modo de vida americano, já que minha formação cultural era européia. Além do mais, ideologicamente, resistia a me integrar assim no paraíso capitalista. Foi uma grande tolice que cometi também, da qual me arrependo. Preenchi mal e porcamente os formulários do programa, no último dia, deixei um monte de coisa incompleta e, logicamente, não funcionou. Uma pena, porque, com meu currículo escolar, estaria dentro facilmente e teria vivenciado uma experiência riquíssima. Guardei-me para Paris, alguns poucos anos depois, mas poderia ter feito as duas coisas. Não foi por falta de orientação, foi por conflito interno e visão equivocada de vida. E tome política estudantil e tome farras dantescas! Enfim, eu não estava pronto e acabei tendo de forjar minha identidade por vias um tanto heterodoxas. Neste ponto, de resto, não fui diferente de grande parte de meus companheiros. Engraçado é que ninguém da minha família havia viajado à Europa ou aos Estados Unidos. Não havia influência familiar nenhuma nesta ânsia de ganhar o mundo, salvo o fato de minha mãe ter nascido em Portugal e de ter vindo com um ano de idade para o Brasil. Não tenho noção se este fato me produziu algum efeito anímico. Na verdade, creio que sempre estive em busca de uma identidade, de um caminho para me encontrar, ainda que isto só tenha acontecido paulatinamente, ao longo dos anos, quase que imperceptivelmente, se é que posso dizer assim. E se é que já me encontrei. Mas, regressando aos anos mais tenros da infância, quero lembrar as épocas de fartura e boa vida em Encantado. Conto isto, por que, mais tarde, quando minha família já morava em Porto Alegre, a vida tornou-se economicamente bem dura: afinal, com a mudança, meu pai recomeçara quase do zero na profissão, bem mais velho, com cinco filhos e esposa para sustentar. O Natal que guardo na retina das terras encantadenses era riquíssimo: meu pai recebia, mortos ou vivos, bichos comestíveis de toda a espécie. A Cooperativa dos Suinocultores da cidade – a maior da América Latina – e o Frigorífico Costi, lá da Barra do Jacaré, mandavam cestas magníficas de presente, com presunto cozido, fiambres variados, conservas, doces, leitão e peru assados. Pena que eu não bebesse para saborear os vinhos, os champanhes finos e as muitas garrafas de uísque escocês da melhor qualidade que a família recebia, de pessoas físicas ou jurídicas. Nossa empregada, aquela mesma que fornicava à noite em seu quarto, no fundo da garagem, às escondidas, era cozinheira de alto quilate, que preparava salgados e doces impublicáveis de tão bons, notadamente compotas. Não sei como eu era tão magrinho. Aliás, nem sei mesmo se comia tanto assim, mas o que vale é a lembrança. Há pequenas coisas que valem uma fortuna. Certa vez em Paris, em 1967 e com 20 anos - há quase uma semana dormindo dentro de automóveis, metro ou bancos de praça - duro e sem cigarros, apreciava uma passeata estudantil, quando passou por mim um francês exaltado, que gesticulava para os que estavam às janelas. Num dos seus pulos revolucionários, caiu-lhe, sem que percebesse, a carteira cheia de cigarros da melhor qualidade. Ganhei meu dia e nunca mais esqueci do lance de sorte em favor do terceiro mundo. Isto vale quase uma loteria. Mas, falando de fartura e boa vida, recordo as duas ou três ocasiões em que fomos passar com meus avós paternos na fazenda, em Itaqui - o mais longínquo município do Estado. O café da manhã compreendia cabeça e espinhaço de ovelha à mesa, churrasco de gado, galinha, porco, tortas, leite colhido direto da vaca, coalhada e nata fresquinha para passar no pão feito em casa, geleias variadas, biscoitos, bolos e tantas outras maravilhas providenciadas por minha avó Dima. Acho que comia mesmo era com os olhos, assim como agora devoro tudo na memória.

Infelizmente, nunca me dei bem com cavalos, por mais que tenha insistido ao longo da vida e isto limitou meus prazeres campesinos, mais bucólicos. Gostava de ouvir as histórias da peonada no galpão, de assistir ao banho de gado na mangueira, mas eu era ainda pequeno para curtir todas as potencialidades daquele mundo. Mais tarde, tive de voltar à fazenda uma ou duas vezes, mas a missão era outra. De qualquer modo, tive certeza que não fora feito para a lida. Criança vibra com novidade e adora fartura, mesmo que não aproveite a metade. Conhecer aquela vida senhorial, quase aristocrática, do Rio Grande dos anos 50, foi muito interessante e retive na memória, ainda que fosse muito pequeno para elaborações racionais. Nem as moscas incontroláveis e nem os mosquitos assassinos diminuíram o prazer de mergulhar no útero das tradições campeiras. Meus avós usavam telas nas janelas e mosquiteiros nas camas, mas isto não era nenhuma novidade para mim, egresso de Encantado. Naquele tempo, convivia-se melhor com os bichos e insetos. Vi por lá todos os tipos de chicotes e rebenques e pode ser que tenha começado a entender melhor os rudes métodos de educar aqui nos pampas. Meu pai contara suas histórias de infância com vô Pedro e realmente o velho impunha respeito, apesar de seu jeitão simpático, envolvente e brincalhão. Vô Pedro andava sempre de bombacha, chinelo, tamanco ou bota. Paramentava-se como genuíno gaúcho e montava bem a cavalo. Tinha uma voz possante, uma cabeça grande, com também grandes orelhas, que me impressionavam. Ficava suave e encantador ao piano, quase imbatível. Sempre me pareceu que meu pai tinha grande necessidade de agradá-lo, ainda que seus contatos não fossem intensos. Aliás, a família Conceição, ao menos com relação aos homens, sempre me pareceu um arquipélago de ilhas familiares. Irmãos, homens e mulheres, passavam anos e anos sem se verem. Bem diferente de meu avô Mattos, vô Pedro era distante, mais individualista, digamos assim, na dele. “Seu” Pedro era uma figura clássica de coronel riograndense. Certa feita, vô Pedro, vó Dima e um tio com mulher e filhos foram nos visitar em Encantado. Meu pai se esmerava e colocava seus melhores tangos na eletrola. Passei a noite dançando sobre o tapete persa da sala de estar, arriscando passos de malabarista, com cabeça abaixada, encurvado ao embalo da música. Meu primo, ao contrário, dançava ereto e discretamente. Meu avô dizia: Fulano, sim, sabe dançar, tem postura, isto impressiona as mulheres. Meu pai, irritado comigo, me lançava olhares, me mandava dançar direito, com elegância, mas eu prosseguia na minha estranha dança solitária, alheio à crítica do avô visitante. Se não agradei na ocasião, agradei aos 15 anos num cabaret de Estrela, onde dancei de verdade, quando o time de futebol de Encantado andou excursionando por lá e eu o acompanhei. Mas minha vida já começava a ser absorvida pelas andanças na Capital, que tantas surpresas me reservavam. O novo na cidade grande não era mais apenas passear de bonde, como narrei no Memórias I.

José Pedro Mattos Conceição
Enviado por José Pedro Mattos Conceição em 28/07/2008
Reeditado em 19/07/2016
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