MEMÓRIAS DA INFÂNCIA ( primeira parte )
Nasci em Porto Alegre, no dia 21 de dezembro de 1946, início do verão e último dia de sagitário. No ventre materno, morava no distrito de Ouro Verde, São Francisco de Paula, onde meu falecido pai, Darcy Silva Conceição, iniciava sua carreira de médico, contratado para atender a fábrica de celulose dos Kroeff. Minha mãe, Maria do Carmo de Matos Conceição - nascida em Coelhoso, Tondela, Portugal - veio a ganhar-me no Hospital Beneficência Portuguesa, que era um dos melhores daquele tempo. Contam que meu parto foi dificílimo e longo, até 05h45min da manhã, porque nasci enforcado pelo cordão umbilical. Se fui um espermatozoide bem-sucedido, também venci mais essa. Talvez a asma que me acompanha pela vida tenha sido o preço a pagar. Menos mal. Minhas primeiras lembranças infantis são névoas que se misturam às do pó de carvão de Arroio dos Ratos, região carbonífera do Estado, para onde seguiu, logo depois de meu nascimento, a família, já que meu pai conseguira novo contrato para atender trabalhadores mineiros. Por lá vivi até os cinco anos de idade e lembro de uma casa com o que me parecia ser um amplo jardim. Lembro ainda das viagens de barca até Porto Alegre, após pegar o trem na estação local. Demorava bastante até a Capital, mas hoje é trajeto que alguns alunos que tive na Faculdade de Direito da PUC, no curso noturno, percorriam com relativa facilidade para vir estudar. Dessa época, trago marcada a lembrança de que gostava de "brincar de cachorro" para passar por debaixo de cercas e enfiar-me embaixo de cadeiras e armários. Mas a carreira canina foi felizmente curta, pois logo nos mudamos para Encantado, uma pequena cidade situada no Vale do Taquari, perto de Lajeado, Arroio do Meio, Roca Salles e Estrela. A mudança foi então radical, por que se trata de zona de colonização italiana, onde o dialeto italiano era habitualmente praticado na intimidade familiar. Havia poucas famílias de negros, alemães e judeus na sociedade local, algumas de “brasiliani” – os “pelos-duros” -, várias famílias árabes, mas a grande maioria era de colonos filhos ou netos de imigrantes italianos. Falava-se tão cantado, com tanto sotaque, que quando vim morar em Porto Alegre, alguns anos mais tarde, chamava atenção na escola. Enfim, mesmo que a gente não fosse, a gente virava colono. Havia, sim, preconceito contra o colono, em certas camadas. Aliás, acho que também por isto aqueles que conheci deram-se tão bem na vida. Logicamente, fui objeto de gozação no colégio, mas não de preconceito. Confundiam meu sotaque com aquele da fronteira, tipicamente gaúcho e totalmente diferente, sobretudo nas suas expressões peculiares. Acho que faziam esta confusão porque meu pai era de Itaqui, da fronteira, onde meu avô Pedro de Azevedo Conceição era fazendeiro, casado com Maria Luísa Sampaio Silva Conceição, vó Dima. Sobrenome era coisa que ainda tinha certo sentido naqueles tempos. Ao menos no grande espaço de paredes e muros altos do velho Colégio Anchieta. Nem vou me deter no frondoso plátano, que engalanava poeticamente os discursos de formatura. Na verdade, Conceição - nome ou sobrenome tão comum, que homenageia Nossa Senhora - era produto sem grife naquela constelação de famílias ilustres, ainda que nem todas.
De início, em Encantado, meu pai alugou uma pequena casa de material, que tinha, ao fundo, uma latrina. Tudo naquele velho estilo interiorano do início dos anos cinqüenta. Depois, fez construir uma bela residência, com amplo terreno, quase ao lado da Igreja Matriz, e era a mais bonita da cidade. Ali, plantou todos os tipos possíveis de árvores frutíferas e passamos tempos gloriosos em família. Minha mãe tinha empregada e babá para cuidar dos filhos.
Sofri assédio de uma delas, aliás: minha mãe ficou furiosa e meu pai, faceiro, dizia que era assim mesmo entre homem e mulher. Mas eu não tinha mais do que nove anos e a empregada era completamente desdentada. Não foi legal. Lamento que meu pai tenha decidido sair de lá, por que clinicava não só para o município, como para alguns outros da região. Lamento por ele, porque, por mim, teria ficado com a família no interior ou que eles viessem para a Capital.
Encantado marcou minha vida, pois foi lá que praticamente descobri o mundo, dos cinco aos dez, onze anos de idade. Mesmo depois, quando já estudava em Porto Alegre, voltava sempre à pequena cidade nas férias escolares, até quinze anos. Aliás, até dezoito anos, pelo menos, costumava aproveitar os festejos, reuniões-dançantes e bailes da cidade e da região, porque aquilo era ainda meu mundo. E as gurias sempre bonitas.
Não quero perder-me em reminiscências, apesar da grande tentação, mas era bom demais jogar futebol nas praças e ruas até tarde da noite, ou "caçador", com a participação das gurias, andar quilômetros de bicicleta sob o sol da manhã, sem qualquer obstáculo ou contratempo, ir ao Rio Taquari, no Picão, andar de canoa, nadar, boiar em câmaras de pneu, pescar ou espiar os brotinhos que coalhavam a praia feita de seixos e terra crua, nos dias escaldantes. Naquele vale, o calor sufoca no verão. Lembro que o inverno era muito frio, os campos cobertos de geada quando eu ia bem cedo para a escola. Sempre a pé, com uma japona "cor de burro quando foge" sobre o guarda-pó branco. Muitas vezes de galochas. Recordo da lareira acesa, do amendoim torrado, do pinhão assado na brasa ou cozido, do pé-de-moleque, da rapadura e das compotas de frutas que enchiam os armários da cozinha. Era lindo o inverno naquela terra.
Estudei no Colégio Madre Margarida, das freiras, e no Grupo Escolar Farrapos. Acho que uns três anos no Grupo e dois anos no Colégio, algo assim. Era bom aluno, mas isto não me livrou de tomar alguns castigos ajoelhado em grãos de milho atrás da porta, como todo mundo. Fiz muitos amigos, quase todos dissipados na poeira do tempo. Briguei poucas vezes, quando inevitável. Muitas vezes, tinha de permanecer retido por fortes crises asmáticas e outras doenças da idade, já que tive todas. Meu pai, coitado, gerou-me um conflito bárbaro: mandava-me quebrar a cara de quem me chamasse de filho-da-puta. Meus colegas e amigos eram geralmente mais velhos, fortes, parrudos, muitos deles eficientes brigadores de rua. É claro que me chamaram de filho-da-puta inúmeras vezes, mas, infelizmente, não pude seguir à risca o conselho paterno. Confesso que a determinação me atucanava, mas tive de ser prático e por isto sobrevivi. Em compensação, também chamei todos eles de filhos-da-puta, ainda que, algumas vezes, na corrida. Nos períodos de "quarentena", brincava de figurinha, um jogo imaginário animado por figurinhas de papel, que recortava de livros e revistas. Brinquei de figurinha até os treze anos, no mínimo. Fazia grandes campeonatos de futebol, com diversas equipes em disputa, regulamento próprio, cobertura de imprensa, escolha de craques, ranking, enfim, um mundo esportivo à parte, em que procurava ser justo para não manipular resultados. Era uma prática solitária, mas bastante criativa. Tenho saudades daqueles tempos e do prazer que sentia, horas e horas fechado no quarto, com o peito chiando de asma. Era louco por futebol, hoje nem tanto. Aliás, da fantasia à realidade, lembro especialmente de dois momentos esportivos muito importantes, quando morava em Encantado e acompanhava por rádio: a vitória do Grêmio Esportivo Renner, desbancando o Esporte Clube Internacional, num Campeonato Estadual em que o meu Grêmio Football Porto-alegrense já estava alijado e a fantástica conquista da Seleção Brasileira na Suécia, em 1958, que eu, minha mãe e meu pai ouvimos pelo rádio a válvulas da General Electric, made in USA. Foi num Natal em Encantado que ganhei meu primeiro fardamento do Grêmio. Foi um presente perna-de-anão, como acontece geralmente para os que aniversariam em dia próximo ao Natal: no aniversário, dia 21, os calções e a camiseta; dia 24, à noite, as meias, a chuteira e a bola.
Nessa época, eu também já gostava muito de ler e devorava livros de aventura, ficção científica e policial. Cheguei até a ensaiar alguns passos para fazer curso de detetive-particular por correspondência, mas não vingou. Pois bem, aos dez anos, não sei por influência de quem, inscrevi-me num concurso para estudantes de escolas primárias, que se realizaria em todo Alto-Taquari, promovido por uma empresa comercial da localidade (Comercial Giordani Ltda.) e a Rádio Encantado, ZYU-32 – A Caçula do Alto-Taquari. Eu respondia sobre Geografia-Geral, também não sei o porquê da escolha, possivelmente por sorteio ou por ser uma disciplina não tão chata. O Concurso chamava-se “Você é o Limite”, bem na linha daquele programa televisivo do J. Silvestre “O Céu é o Limite”. Deve ter durado um mês. Estudava à luz de velas, porque, às vinte e duas horas, apagavam-se todas as luzes da cidade. Eu ia sozinho até a Rádio, começava o programa de auditório e respondia o que me perguntavam. Acertando sempre, acabei chegando à grande final, que se desenrolou no Cine Teatro Encantado, numa manhã de domingo, casa cheia, com toda pompa e circunstância. Fui novamente sozinho, subi ao palco, respondi, e, quando vi, tinha sido o vencedor. Como prêmio, a Casa Comercial disponibilizou-me várias mercadorias à escolha, o que, naquele tempo, não era abundante. Claro, escolhi uma bicicleta poderosa, pneu aro 28, marca Alpina e só dava eu andando pela cidade, seus distritos ou “linhas”, como se chamavam. A seguir, meus pais decidiram que eu deveria estudar em Porto Alegre para, quem sabe, ter um futuro melhor. Fui enviado à casa de meus avós maternos, José Simões de Matos - português, filho de Joaquim e Joaquina e grande líder espírita no Estado - e minha avó, Aldina Rodda Ghizzoni de Matos, Dona Dina - filha de imigrantes italianos de Pavia e Bérgamo - que me assumiram por quatro anos. Moravam na Avenida Borges de Medeiros, número 979, segundo andar, sem elevador. Meu avô era representante comercial do Lanifício Inglês (antes, fora caixeiro-viajante), mas, muito desapegado a dinheiro e a bens materiais, dedicava-se diuturnamente à doutrina e à prática Espírita, tendo sido, por muitos anos, Presidente da Sociedade Espírita Paz e Amor e da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, que ajudou a construir. Minha avó era do lar e apenas o acompanhava, mas tinha maiores preocupações com bens materiais, para sorte da família. Ambos levavam aquela existência simples e pacata de um casal de velhos dos anos cinqüenta. Com eles residia e trabalhava Gema Nardi, que viera também do Alto Taquari e era tratada praticamente como filha. Gema, hoje, é viúva, trabalhou com Chico Xavier – seu falecido esposo era editor das obras de Chico, amigo de meu avô . Aquela era, portanto, minha nova família, mais tarde engrossada por meu tio Cícero, minha tia Isabel e seus três filhos até então. Graças a esse meu tio, conheci televisão e assisti aos primeiros Grenais transmitidos ao vivo, em preto e branco.
Meu pai fez questão que eu estudasse no tradicional Colégio Anchieta, sito na Rua Duque de Caxias, cujos fundos situavam-se na Rua Fernando Machado, onde até já morei há alguns anos. A recomendação fora a de que, para lá ser aceito, precisaria vir com notas altas do Exame de Admissão ao Ginásio, que na época era obrigatório. Tirei terceiro lugar no Colégio Estadual Madre Margarida de Encantado, embora eu ache que aí tenha tido mais sorte do que juízo. Meu pai, orgulhoso, levou-me para falar com o Padre Reitor, creio que Padre Nunes, a fim de fazer a matrícula e, quem sabe, gabar-se um pouco. O negócio era um tanto solene. Aí, o Reitor, na minha frente, disse a meu pai que, mesmo com boas notas, naquele colégio eu ficaria lá pelo vigésimo lugar, se fosse muito bem nos estudos. Que meu pai não se iludisse, pois o Anchieta reunia a nata de Porto Alegre e o ensino era muito puxado. Como eu vinha do interior, poderia faltar-me base. No primeiro mês, tirei terceiro lugar, no segundo mês, primeiro, e assim foi praticamente até o quarto ano ginasial, quando comecei a olhar com mais atenção as pernas das meninas e a frequentar reuniões-dançantes. Enfim, eu precisava vencer naquele novo mundo, mesmo sem o aconchego da família. Estudava por necessidade e algum prazer, confesso, sobretudo por que, nas formaturas solenes de final de ano, subia inúmeras vezes ao palco, nos quatro anos do ginásio, chamado para receber diplomas e medalhas por melhores notas em diferentes disciplinas. O coloninho, afinal, conseguia sua revanche. Lamento um pouco que meus familiares não comparecessem a tais eventos para, ao menos, testemunhar aqueles pequenos momentos de vitória pessoal, mas moravam longe, mais de cinco horas de carro, com duas balsas para atravessar os rios. E havia ainda os irmãos pequenos. Quando saí de Encantado, tinha mais três irmãos menores, o mais moço nasceu depois e eu já estava grandote. Estudei para me afirmar e acho que também desenvolvi minha capacidade de ser simpático a partir de então. Meu pai enviava mesada minguada e havia todos aqueles custos extraordinários de quem estuda em colégio de elite: passeios, retiros, festas e tudo o mais que requeria dinheiro. Nem estou falando de roupas. Não eram tempos de apelos consumistas e não se sacralizava o prazer do jovem como hoje, mas também não se vivia na era das cavernas e sempre tinha em que gastar. Modelos e artefatos para as aulas de Desenho e Trabalhos Manuais eram caros. Livros eram caros. Nisto, dava-se um jeito, mas faltava o capital para as festas e os passeios com a turma. Como era simpático, o pessoal fazia pressão para eu comparecer e os padres acabavam dando colher-de-chá. Aliás, fui sempre eleito líder de classe durante pelo menos três dos quatro anos de ginásio. Não que fosse prestativo ou coisa do gênero, mas por que gostavam de mim: era estudioso, sem ser o cu-de-ferro típico. Talvez eu fosse uma curiosidade. No último ano de Anchieta, fui convidado a ser Secretário do Ginásio do Grêmio Estudantil, na gestão dos líderes José Luís Fiori e Francisco Machado Carrion Junior, que eram mais velhos, do curso científico. Não aceitei. Pior, fiquei meio indignado. Senti-me diminuído, porque meu amigo e colega de aula, Siqueira, foi convidado a ser o Secretário de Cultura. Isto prova que é muito tênue a fronteira entre a humildade e a soberba. Competíamos tanto em notas, jogos de botão de mesa, xadrez e pela mesma mulher, que fiquei com a lucidez afetada. Eu não tinha aquela bola toda. Ser Secretário do Ginásio era, na verdade, politicamente mais interessante e adequado ao meu perfil. Não tive humildade e agi como um adolescente qualquer, ainda que me acreditasse diferenciado. Não era. Ademais, realmente o cargo era bem mais apropriado ao Siqueira. Só a maturidade nos ensina que não é oito e nem oitenta. Ainda dava os primeiros passos e muita cacetada a vida me reservava. Possivelmente, o bom conceito desfrutado junto aos padres e colegas encheu demais a minha bolinha.
Nunca me ensinaram que dinheiro era importante, ao contrário. Isto só comecei a descobrir ao longo da juventude, mas só aprendi alguma coisa mais tarde, com certa dose de surpresa. Minha mãe era espírita e despojada, tanto quanto seus pais; meu pai, filho de fazendeiro da fronteira e médico, acreditava, como ocorrera com ele, que bastavam diploma e anel de grau no dedo para que a vida fosse se ajeitando. Ademais, era homem idealista, que exerceu mandato parlamentar por dois anos, como suplente de deputado estadual, custeando as próprias campanhas e queimando reservas arduamente amealhadas. Mas, na minha geração, já eram muito grandes e rápidas as transformações e era preciso ficar mais antenado. A vida profissional ficara bem competitiva e surgia como um dragão a sociedade de consumo. São, enfim, lições que a gente aprende na prática, no ardor da peleja e até nem sei ao certo se aprendi mesmo tudo o que devia, mas não posso me queixar.
Foi muito divertida a vida em Porto Alegre, logo que cheguei do interior: eu adorava andar de bonde, para, depois, contar as peripécias a uma platéia atenta de muitos amigos, lá na distante e saudosa Encantado. Permanecia na escola toda manhã, desde bem cedinho até meio-dia. É preciso aqui referir a melhor hora, que era, certamente, a do recreio, especialmente para comer mil-folhas que o barzinho do colégio vendia. Quando sobrava dinheiro, uma Coca-Cola. Isto que era vida. À tarde, duas horas para estudos suplementares e temas de casa. A partir das dezesseis horas, no máximo, corria ao colégio para intermináveis partidas de futebol na cancha de areião, que era o pátio do ginásio. À noite, leitura de livros e de histórias em quadrinhos, que sempre amei, e, eventualmente, uma novelinha de rádio; depois, dormir cedo, com penico debaixo da cama. No inverno, minha avó me fazia tomar uma xícara de leite quente, com uns seis ou sete dentes de alho crus. Era bom. A partir da quarta série, com quatorze ou quinze anos, comecei a me agitar com política estudantil, passeatas, reuniões-dançantes, bailes e meninas. Minha primeira paixão, eu a conheci creio que com quatorze anos. Tivemos idas-e-vindas por mais de dois anos, naquele esquema tipicamente adolescente. Era um ano mais nova, muito bonita, inteligente e com cabeça avançada para a época, que deixou lembrança forte de primeiro beijo de olhos cerrados e de tantas outras emoções. Morava perto da casa de meus avós, na Lima e Silva, e era vizinha de um de meus melhores amigos e colega de aula, Siqueira, que também gostava dela. Nosso caso estendeu-se também por um ou dois veraneios, mas foi um pouco tumultuado. Minha amizade com esse colega, acredito, ficou um tanto abalada pelos entreveros do amor disputado. Pena. Era um cara brilhante, um verdadeiro intelectual, talvez a maior inteligência do Anchieta; mudou-se há muitos anos do Estado e soube que faleceu. A menina linda e sapeca, que nos ensinou o caminho dos melhores sentimentos, partiu precocemente, há muitos anos. Assim é a vida. Enfim, com o passar do tempo, fui lutando por maior espaço e liberdade, inquietando os avós com meus novos horários. Não foi fácil. Eles dormiam muito cedo, antes das vinte e uma horas e eu começava a voltar para casa à meia-noite ou depois. Felizmente, por essa época, meus pais vieram de vez para a Capital e voltei a morar com eles numa casa bem pertinho, alugada, na Rua Fernando Machado. Passei a viver um momento muito diferente. A primeira providência que adotei, à revelia da família, foi fazer um teste de admissão para o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o “Julinho”, escola pública-padrão do Estado. Passei e livrei-me do jugo jesuíta do velho Anchieta. Já não aguentava o peso do preconceito, do dogma, da liturgia, das missas de aula às seis horas da manhã todas as quartas, no inverno, além daquela obrigatória de domingo, e outras coisas ligadas ao pensamento e às atitudes humanas. Sou grato ao colégio, mas agi certo. Estava escolhendo meu destino, e sozinho, como convém. Fiz curso clássico no Julinho com a intenção de tirar Direito, Jornalismo, Letras ou Filosofia. Nada da área científica. Minha família protestou, mas não com vigor, pois o Anchieta era bem caro e o novo colégio era gratuito. No Julinho, envolvi-me com política estudantil e com movimentos de contestação até o fundo da alma. Comecei a ter fortes conflitos em casa com meu pai, que era homem muito conservador e impositivo. Recordo que ele me dizia que, se viesse o socialismo ao Brasil, ele até não se daria tão mal, pois era trabalhador e esforçado, e que eu, sim, me daria muito mal. Eu respondia que, ao contrário, eu me daria bem melhor do que ele, porque seria chefe e ele, trabalhador, seria meu subordinado. E assim brigávamos madrugada adentro. Continuei a ler bastante, pois a leitura sempre fora um fascínio, mas já estudava bem menos. Mesmo assim, tirava boas notas. Aumentava o ritmo das festas e noitadas. E dos conflitos em casa. Em pouco tempo, mudamo-nos (1965) para o apartamento novo que meu pai adquirira na planta, quando ainda residia em Encantado, sito na Avenida Senador Salgado Filho, no edifício Jaguaribe. Lá também residi até casar-me, em 1971: pai, mãe, cinco filhos e a falecida Yeda, a empregada e amiga lá de Putinga, há mais de trinta anos com a família. Nos livros de crônicas “Brumas de Xangri-lá” e “Aconteceu num verão” conto boa parte dos eventos mais interessantes dessa época de contestação estudantil, aventuras e entreveros festivos, com ênfase nas grandes férias de verão em Xangri-lá e da longa temporada em que residi, estudei e trabalhei em Paris, aos vinte anos de idade, nos idos de 1967.
Há um lado selvagem, digamos assim, da vida livre no interior, ao menos naquele tempo. A gente convive com guris de todas as idades e condições econômico-sociais, além das diferenças familiares e culturais. Tive ótimos amigos e companheiros de estripulias, mas acho que tive a sorte de sobreviver intelectualmente equilibrado no contraste. É que meus pais insistiam em certas histórias, lendas e valores, que não encontravam correspondência na crua realidade em que eu vivia. Meus pais insistiam em que acreditasse em Papai Noel, mesmo que eu já tivesse, digamos, seis anos e convivesse com gurizada mais taluda, que debochava do bom velhinho. Foi duro ter de intimá-los a deixar de invenções e de confirmar que certos estavam meus amigos. Depois, mais tarde, discursos e conselhos contra a masturbação, que seria antinatural. E assim por diante. Ora, eu via acontecer coisas cabeludas ao redor, ouvia histórias de éguas lascivas e ovelhinhas suaves, que alguns guris contavam com naturalidade, de tal modo que meus pais cairiam das alturas. Eram mundos diferentes, de maneira que era mesmo necessário pensar bem e escolher as próprias verdades.
Tinha eu oito ou nove anos e minha mãe mandou-me ao cinema com a babá, à noite. Acontece que não era propriamente uma ida ao cinema, mas a um evento no centro da cidade, onde seria projetado um filme qualquer na parede enorme de um prédio, acho que da Concessionária Ford de Encantado. Cheio de gente. Talvez, na época, estivesse temporariamente desativado o cinema da cidade. Coisa de Cinema Paradiso. Só que houve um problema técnico qualquer e o filme acabou não sendo exibido, todos tendo de voltar para casa. Chegando a casa, ouvi ruídos nos fundos e vislumbrei meu pai e minha mãe, no escuro, cercando o quarto da empregada, que era um anexo da garagem. Senti que era rolo e peguei um canivetinho de escoteiro. Minha mãe bateu à porta, chamando alto e insistentemente pela empregada, quando se ouviu nitidamente o ruído de janela sendo aberta. Corri para o lado da janela e percebi meu pai com um revólver 38 na mão calçando um homem alto. Fui pra cima do cara com meu canivetinho. O sujeito, apavorado, me dizia pra ficar quieto, pra não deixar meu pai mais nervoso e coisas do tipo. Meu pai xingava a criatura e dizia que a sua casa era de respeito. O cara pedia mil desculpas, quase aos prantos. E eu ali, a infernizar. No final, tudo se resolveu. A empregada andava recebendo em seu quarto o povo inteiro, tendo a mãe percebido o movimento de homens espreitando nas esquinas e atrás de árvores na rua. Mandaram-me ao cinema e prepararam o flagrante. "Só não contavam com minha astúcia" ... Pelo desastre da exibição cinematográfica, acabei participando do episódio e foi inesquecível.
Nesse cenário, a gente construía a personalidade e o destino.