Ensaio para a cegueira
As noites de maio na Boa Nova de minha infância eram mesmo um convite às reuniões em família, à beira do fogão de lenha, com suas paredes de tijolos enegrecidos, quentinhas e aconchegantes. Cravada entre serras no Planalto da Conquista - sudoeste baiano - a 800 metros de altitude, a cidade começa nesta época a ganhar ares de inverno, tomada por um insistente vento frio. Ainda hoje o cheiro de café fumegante me faz lembrar as intermináveis conversas, acompanhadas de muita risada e comilança (como esquecer os biscoitos de polvilho crocantes e amanteigados?).
Em pouco tempo e esses encontros ritualísticos se transformavam em reminiscências daqueles personagens e casos tipicamente boanovenses, mas que guardavam – entendi isso quando saí de lá – um tanto de universalidade. Um dos muitos que me ocorrem agora remonta aos anos 40 e tem como protagonista um senhor chamado Maurílio Sá, uma espécie de coronel popular, que era conhecido por colocar em prática as brincadeiras mais bizarras, sempre na perspectiva de fazer valer a sua vontade ou simplesmente para rir das consequências delas.
Conta-se que era sagrada em sua casa, cinco noites por semana, a “roda de carteado”, composta por ele mesmo e pelos compadres Darío Celes, Alcenor Barros e Juvêncio Benevides. O jogo de baralho ia noite afora regado a muito café, tira-gostos e, à vezes, a uma cachacinha. Nem mesmo depois que a “usina de força” desligava as luzes da cidade por volta das 23 horas, os quatro guardavam as cartas. Entravam em cena os velhos e bons candeeiros para manter acesos os ânimos e a jogatina.
Ainda que sem espaço em qualquer das duplas, outra presença cativa era a de Nazinho Monteiro... Aquele inveterado intruso, palpiteiro, “peru” (na Bahia) ou “sapão” (em Minas). - “Mas compadre, por que ‘cê não descarta esse quatro de Ouros?”, opinava ele para desespero do coronel Maurílio e de Juvêncio, seu parceiro.
Entre palpites e saídas da mesa para filar uma caneca de café e as guloseimas servidas, Nazinho procurava dividir irmanamente suas bisbilhotices aos quatro participantes, guardando para si alguns breves minutos de cochilo, antes de voltar à ativa com seus conselhos: - “Compadre Darío, compadre Darío, ‘cê vai terminar com esse Curinga agarrado na mão!”; “solta o Rei, compadre Alcenor, solta o Rei!”. Essa ladainha era de segunda a sexta e todos tinham que suportá-la pela velha amizade e pela falta de “desconfiômetro” do “língua-solta”.
Consenso mesmo era que ele merecia, ao menos, um troco à altura das suas intromissões. E foi o que aconteceu. Numa noite qualquer, uma hora após o início do carteado, já com as mãos repletas de biscoitinhos de nata, Nazinho voltou mais ativo do que nunca, revelando as cartas de um, “cantando” jogadas pra outro... De repente, o tão esperado momento: seu pescoço tomba bruscamente à frente, os olhos se fecham e um ruído rouco de ronco é ouvido em alto e bom tom. Àquela altura a luz elétrica já havia ido embora e os três candeeiros cumpriam plenamente seu papel. Arrastando devagar a sua cadeira e se levantando nas pontas dos pés, o coronel Maurílio iniciava a primeira parte do plano, apagando as únicas chamas que iluminavam o ambiente. O breu que tomou conta da sala não permitia que se vissem sequer as próprias mãos.
A segunda parte consistia em fingir que o jogo seguia normalmente, e isto significava continuar conversando, avisando ao outro que era a sua vez, reclamando do parceiro pela carta jogada à mesa e outras intervenções em voz alta. Cerca de dez minutos depois do reconfortante cochilo, eis que acorda ativo o compadre falastrão, pronto para voltar a “peruar”. Desta vez, porém, alguma coisa lhe parecia esquisita. Olhos arregalados e nada. Uma segunda esfregada de mãos nas pupilas e ninguém à vista. Em seguida, um grito esganiçado quase acordou toda a vizinhança: - “Tô ceeeego!!!!”
E foi assim: até aguardar aquele quarteto parar de rir e acender novamente os candeeiros, Nazinho Monteiro viveu os segundos mais longos e desesperados de sua vida.