Maio de 68 passou
Em maio de 68 eu tinha vinte e um anos de idade e não conhecia nada da vida. Expulso do seminário há menos de dois anos, era como o canário do apólogo de Machado de Assis, que só conhecia do mundo o brechó onde sua gaiola estava pendurada. Talvez por isso, como um observador alheio, sinto-me à vontade para falar. Não ouvi ninguém dizer que 68 passou, pior, que nem precisaria ter existido. Seria fácil falar o que todos querem ouvir. Eu quero que duvidem, discordem, discutam. Vamos lá: maio de 68 não é um mito? Pois mitos são coisas que não existem. Mitificaram tanto 68... Nós, que vivíamos naquela época, tínhamos consciência do que estava acontecendo? E estaria acontecendo precisamente então, em maio de 68?
Quem vinha da gaiola do seminário tinha motivos de sobra para não ter consciência nenhuma. Mas quem vivia na gaiola da província – nas cidades pequenas ou grandes do interior – teria alguma consciência da realidade? E quem vivia nas grandes capitais, não era também um engaiolado? Havia as ditaduras do comunismo ou do capitalismo, havia a mentalidade fechada, pequena, da maioria dos jovens. Há os elos de uma cadeia, que vêm de muito longe. Houve antes os beats, que, angustiados com a herança da asfixia moral de duas guerras mundiais, proclamaram a liberdade de costumes. Houve os movimentos feministas. Houve bem antes os movimentos dos trabalhadores. As mudanças ocorreriam em 68, 66 ou 62. Deveriam ter ocorrido muito antes.
Comparem. A Bastilha não caiu porque era um símbolo da monarquia para a Revolução Francesa. Caiu porque, por acaso, era o lugar onde estavam as armas de que os revolucionários precisavam. O muro de Berlin caiu porque, por acaso, a notícia de que não seria mais necessário vazou. A notícia se espalhou e o povo derrubou o muro, que já não tinha sentido. Assim as transformações que ocorreram, como se diz, por causa de maio de 68, ocorreriam de qualquer maneira. A sociedade como estava não tinha mais sentido. Mudaria em maio, setembro ou novembro de qualquer ano. Já estavam mudando antes de 68, continuaria mudando depois, muito depois. E muita coisa não mudou. Não há muitas reivindicações ainda hoje? Não há ainda um imenso clamor social? E não há líderes daquele tempo, ícones de “maio de 68”, que são hoje burgueses acomodados, abraçando comodamente o modus vivendi que combatiam?
Por isso digo que maio de 68 não tem tanta importância. Jovens de então, entrevistados, respondiam não ter nenhum objetivo senão “fazer a revolução”. Querem coisa mais vaga do que “fazer a revolução”? As transformações ocorreram porque tinham que ocorrer. Na França, Charles de Gaule retomou o poder e tudo voltou à estaca zero. A Rússia sufocou com seus tanques a Primavera de Praga. Os militares calaram os estudantes brasileiros. As transformações, porque tinham que ocorrer, ocorreram. Há quem diga que o jovem de hoje é apático só porque não quer “fazer a revolução”. Mas quem disse que ele não quer? O jovem de 68 não definia o que era “fazer a revolução”. Por que querem que o de hoje defina? Esperem o julgamento do tempo, juiz implacável.